Metodologia

A Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde a sua criação em 1975, se defronta com os conflitos no campo e o grave problema da violência contra o que se convencionou nomear como trabalhadores e trabalhadoras da terra, termo que engloba diversas categorias camponesas, entre estas comunidades tradicionais, assalariados rurais, indígenas e pescadores/pescadoras artesanais que vivem em espaços rurais e têm no uso da terra e da água seu sistema de sobrevivência e dignidade humana.1 Desde o início também se faz o levantamento de dados sobre as lutas de resistência pela terra, pela defesa e conquista de direitos, e denuncia por diversos meios, sobretudo através do seu Boletim, a violência sofrida pelos povos e comunidades.

Já no final dos anos 1970, foi promovida uma pesquisa em âmbito nacional sobre os conflitos e a violência que afetavam os povos e suas comunidades. Os dados desta pesquisa foram sistematizados e publicados, em 1983, no livro CPT: Pastoral e Compromisso, uma coedição Editora Vozes-CPT, o qual incluiu relatos de conflitos até dezembro de 1982.

A partir de então, a CPT continuou a registrar sistematicamente os dados que eram publicados em seu Boletim. Em 1985 iniciou a publicação anual intitulada Conflitos no Campo Brasil, com os registros das ocorrências de conflitos e violências sofridas pelos trabalhadores e trabalhadoras da terra.

Até 1988, os registros eram feitos à mão, em fichas. Neste referido ano, já com acesso à informática, criou-se o primeiro banco de dados, o dBase, onde foram registrados os conflitos até 1999. Em 2000, houve uma reestruturação e criou-se o DataCPT; os dados foram migrados para SQL server.Porém, permaneceram duas bases de dados separadas (uma até 1999 e outra a partir do ano 2000).Em 2018, iniciou-se uma nova reestruturação do banco de dados, visando a junção das duas bases de registros. Em 2020 tal união foi feita. Nasceu o Gaia, novo banco de dados em construção e análise, o qual reúne em si as ocorrências quantitativas e qualitativas publicadas pela CPT no decorrer dos 38 anos. Além do agrupamento das bases de dados, outrora separadas, o Gaia traz novas categorizações de registros. Outra dimensão importante é que este sistema unificou em um único modelo os dados registrados pela CPT desde 1985. Neste processo, foram necessários alguns ajustes metodológicos de forma a manter a consistência dos dados ao longo dos anos, os quaisserão abordados posteriormente, bem como as mudanças ocorridas no contexto da Covid-19, doença infecciosa causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no dia 11 de março de 2020.

A CPT tornou-se a única entidade a realizar tão ampla pesquisa sobre os conflitos no campo em âmbito nacional. Com este trabalho formou um dos mais importantes acervos documentais sobre as lutas pela terra-território e formas de resistência dos trabalhadores e trabalhadoras da terra, das águas e das florestas, bem como sobre a defesa e conquista de direitos.

Os documentos dizem respeito a conflitos ocorridos desde os anos de 1960. Ao iniciar a digitalização em 2008, a CPT priorizou os que se referem aos conflitos que aconteceram de 1985 a 2007, já sistematizados em seu banco de dados. Estes foram identificados, organizados por temas e digitalizados. Por sua vez, os documentos anteriores ao banco de dados – período de 1960 a 1985 – foram digitalizados e organizados por datas, sem registros de ocorrências quantitativas e qualitativas das informações. Os documentos referentes aos conflitos a partir de 2008 já foram adquiridos em forma digital, bem como identificados, sistematizados e salvos no banco de dados Datacpt, e posteriormente no Gaia. No momento, o acesso virtual aos documentos digitalizados encontra-se suspenso diante da necessidade de sua adequação a uma nova política de tratamento dos dados e à possível migração para uma nova plataforma, que esteja de acordo com as regras arquivísticas internacionais.

Por que documentar?

A CPT é uma ação pastoral da Igreja, tem sua raiz e fonte no Evangelho e como destinatários de sua ação os trabalhadores e trabalhadoras da terra e das águas. Por fidelidade “[…] ao Deus dos pobres, à terra de Deus e aos pobres da terra, como está explícito na definição de sua Missão, a CPT assumiu a tarefa de registrar e denunciar os conflitos de terra, água e a violência contra os trabalhadores e seus direitos, criando o setor de documentação. Em 2013 foi renomeado “Centro de Documentação Dom Tomás Balduino”.

A tarefa de documentar tem uma dimensão teológica, porque de acordo com a tradição bíblica, Deus ouve o clamor do seu povo e está presente na luta dos trabalhadores e trabalhadoras (Ex 3, 7-10). Esta luta é em si mesma um ritual celebrativo desta presença e da esperança que anima o povo.

Além deste aspecto, a CPT fundamenta seus registros em outras dimensões, que são: ética, política, pedagógica, histórica e científica.

Ética – porque a luta por terra, água, trabalho é uma questão de justiça e deve ser pensada no âmbito de uma ordem social justa.

Política – porque o registro da luta é feito para que o trabalhador, a trabalhadora, conhecendo melhor sua realidade, possa com segurança assumir sua própria caminhada, tornando-se sujeito e protagonista de sua história.

Pedagógica – porque o conhecimento da realidade ajuda a reforçar a resistência dos trabalhadores e trabalhadoras e a forjar a transformação necessária da sociedade.

Histórica – porque todo esforço e toda luta dos trabalhadores e trabalhadoras de hoje não podem cair no esquecimento e devem impulsionar e alimentar a luta das gerações futuras.

Científica – porque o rigor, os procedimentos metodológicos e o referencial teórico permitem sistematizar os dados de forma coerente e explícita. A preocupação de dar um caráter científico à publicação existe não em si mesma, mas para que o acesso a estes dados possa alimentar e reforçar a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras, em seu enfrentamento com o latifúndio. Não se trata simplesmente de produzir meros dados estatísticos, mas de registrar a história da luta de uma classe que secularmente é explorada, excluída e violentada.

O que a CPT documenta e conceitos que fundamentam os registros

    A Comissão Pastoral da Terra registra conflitos, os quais são entendidos como ações de resistência e enfrentamento que acontecem em diferentes contextos sociais no âmbito rural, envolvendo a luta pela terra, água, direitos e pelos meios de trabalho ou produção. Estes conflitos acontecem entre classes sociais, entre os trabalhadores, ou por causa da ausência ou má gestão de políticas públicas. Nesse sentido, os registros são catalogados por situações de disputas em conflitos por terra, pela água, conflitos trabalhistas, em tempos de seca, conflitos em áreas de garimpo e conflitos sindicais.Até o ano de 1999 registrou-se conflitos relacionados a política agrícola. Nas duas últimas décadas, praticamente não se tem registro de conflitos em tempos de seca, sindical e garimpo. Os casos de garimpo atualmente estão relacionados mais às violências contra as comunidades e ao meio ambiente do que às violências sofridas pelos garimpeiros, situação que levou a CPT, no passado, a registrar este tipo de conflito.

    Conflitos por terra são ações de resistência e enfrentamento pela posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso aos recursos naturais, tais como: seringais, babaçuais ou castanhais, dentre outros (que garantam o direito ao extrativismo), quando envolvem posseiros, assentados, quilombolas, geraizeiros, indígenas, pequenos arrendatários, camponeses, sem-terra, seringueiros, camponeses de fundo e fecho de pasto, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, faxinalenses etc.

    As ocupações/retomadas e os acampamentos também são classificados no âmbito dos conflitos por terra.

    Ocupações e ou retomadas são ações coletivas das famílias sem-terra, que por meio da entrada em imóveis rurais, reivindicam terras que não cumprem a função social, ou ações coletivas de indígenas e quilombolas que reconquistam seus territórios, diante da demora do Estado no processo de demarcação das áreas que lhe são asseguradas por direito.

    Acampamentos são espaços de luta e formação, fruto de ações coletivas, localizados no campo ou na cidade, onde as famílias sem-terra organizadas, reivindicam assentamentos. Além disso, os povos indígenas e comunidades tradicionais também formam acampamentos na luta pela retomada de seus territórios. Em nossa pesquisa registra-se somente o ato de acampar. Não se faz o acompanhamento do número de famílias acampadas no país.

    Conflitos Trabalhistas compreendem os casos em que a relação trabalho versus capital indicam a existência de trabalho escravo e superexploração. As greves também integram o conjunto dos conflitos trabalhistas (ver adiante).

    Na compreensão do que é Trabalho escravo, a CPT segue o definido pelo artigo 149, do Código Penal Brasileiro, atualizado pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003, que o caracteriza por submeter alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, ou por sujeitá-lo a condições degradantes de trabalho, ou quando se restringe, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, ou quando se cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho ou quando se mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

    As situações de Superexploração acontecem na esfera salarial e dizem respeito às ocorrências em que as horas de trabalho não pagas excedem a taxa normal de exploração do trabalho. Geralmente estes casos estão ligados a precárias condições de trabalho e moradia.

    Ações de Resistência (Manifestações por Direitos Trabalhistas): A partir de 2018, com o processo de reestruturação do banco de dados, decidiu-se que as greves por melhorias nas condições de trabalho, relacionadas às questões de segurança, benefícios trabalhistas ou salariais rurais, bem como para impedir a desvalorização e desproteção do trabalho, ou a perda dos benefícios vigentes, serão novamente integradas ao conjunto dos conflitos trabalhistas.

    Conflitos pela Água são ações de resistência, em geral coletivas, que visam garantir o uso e a preservação das águas; contra a apropriação privada dos recursos hídricos, contra a cobrança do uso da água no campo, e de luta contra a construção de barragens e açudes. Este último envolve os atingidos por barragem, que lutam pelo seu território, do qual são expropriados. Envolve ainda a luta dos povos e comunidades frente à mineração.

    Conflitos em Tempos de Seca são ações coletivas que acontecem em áreas de estiagem prolongada e reivindicam condições básicas de sobrevivência e ou políticas de convivência com o semiárido.

    Conflitos em Áreas de Garimpo são ações de enfrentamento entre garimpeiros, empresas e o Estado.

    Conflitos Sindicais são ações de enfrentamento que buscam garantir o acompanhamento e a solidariedade do sindicato aos trabalhadores, contra as intervenções, as pressões de grupos externos, ameaças e perseguições aos dirigentes e filiados.

    Estes três últimos, só são publicados quando é expressiva sua ocorrência, ou quando o contexto em que se desenrolaram indicar a pertinência de uma análise a respeito.

    Além disso, são registradas as manifestações de luta e as diversas formas de violência praticadas contra os povos camponeses: assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, prisões, agressões e outras.

    As Manifestações são ações coletivas dos trabalhadores e trabalhadoras da terra e das águas que protestam contra atos de violência sofrida ou de restrição de direitos, reivindicando diferentes políticas públicas e ou repudiam políticas governamentais ou exigem o cumprimento de acordos e promessas.

    As manifestações também sofreram mudanças significativas no contexto da Covid-19, pois no mês de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu o distanciamento social como uma das medidas mais importantes e eficazes para reduzir o avanço do vírus SARS-CoV-2. Tal distanciamento exigiu a redução de circulação de pessoas em espaços coletivos públicos (ruas e praças) ou privados (shoppings, shows etc.), ou seja, a não aglomeração. Com isso, os povos do campo e suas organizações paralisaram as manifestações presenciais, porém adotaram manifestações virtuais como instrumentos legítimos de denúncia e luta contra as mais variadas formas de violências aos seus territórios. Apesar de as manifestações virtuais romperem com a dimensão de espaço e sujeitos sociais compreendidos historicamente pela CPT, as que apresentaram pautas reivindicatória concretas dos povos do campo e suas organizações, com intencionalidade de denunciar uma determinada violência contra uma comunidade específica e de protestar contra ações e políticas que violentam os modos de vida dos povos do campo, criminalizando as suas lutas, foram incorporadas aos registros.

    Outra mudança nas manifestações em contexto de pandemia foi que agenda de lutas históricas, a título de exemplo a Jornada Nacional de Lutas pela Reforma Agrária, foram revertidas para ações de solidariedade, entre estas, doação de alimentos, pautando a reforma agrária, a agroecologia, a redução dos efeitos da fome, entre outras dimensões. Plantio de árvores que denunciaram a destruição ambiental por parte do agronegócio, da mineração etc. e pautaram o entendimento que reforma agrária é sinônimo de alimentação saudável e de cuidado com os bens comuns da natureza também integraram o conjunto das manifestações a partir de 2020.

    Por Violência entende-se o constrangimento, danos materiais ou imateriais; destruição física ou moral exercidos sobre os povos do campo e pessoas aliadas. Esta violência está relacionada aos diferentes tipos de conflitos registrados e às manifestações dos movimentos sociais do campo.

    A partir do ano de 2020, com o novo banco de dados (Gaia), começou-se a sistematizar quantitativamente violências relacionadas ao desmatamento ilegal, impedimento de acesso às áreas de uso coletivo e às violações nas condições de existência e a partir de 2021 passou-se a registrar os incêndios como violências contra as famílias. Outras modalidades nesse quesito incorporadas ao banco de dados foram violências relacionadas a sexo, gênero e sexualidade2, bem como à raça/cor/etnia e às criminalizações3.

    Mortes e contaminações pela Covid-19, dos povos do campo e suas organizações, também foram registradas no banco de dados da CPT, porém o Conselho Nacional da CPT deliberou, no mês de novembro de 2020, que as mesmas não seriam incluídas no total dos conflitos no campo, ou seja, não seriam contadas como conflitos na série histórica. A partir dessa decisão criou-se um instrumento de inserção no banco de dados denominado violência fora do Caderno de Conflitos.

    A CPT entende que questões ambientais e direitos humanos podem estar presentes em todos os conflitos cadastrados, sistematizados e analisados pelo Centro de Documentação.

    1. Ambiente representa o conjunto dos elementos naturais em sua forma original e que, a partir da relação com o ser humano, sofre transformações, porém estas devem levar em consideração a possibilidade de sobrevivência da maioria das espécies de vida ali presente. A CPT, também considera que o conceito de natureza é socialmente construído (MONTIBELLER Filho, 2004; PORTO-GONÇALVES, 2004; e, BELLEN, 2006), e o conceito de ambiente também. Neste sentido se faz necessário perceber qualquer ação que envolva humanos e natureza como uma relação entre as espécies viventes nos espaços (sejam eles físicos, culturais, econômicos, políticos e sociais). Neste sentido, quando identifica e apresenta a existência de um conflito no espaço rural, especificamente neste espaço, entende que há, também, um conflito ambiental.
    2. Direitos humanos. A CPT, sendo signatária do Comitê Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCA) assume compromisso com a lógica de que a conquista ou a agressão aos Direitos Humanos é situação integrante das várias condições de vida dos trabalhadores e trabalhadoras da terra e de suas organizações nos espaços em que atuam. A Plataforma DHESCA tem como objetivo contribuir para que o Brasil adote um padrão de respeito aos direitos humanos, tendo por fundamento a Constituição Federal do Brasil promulgada em 1988, o Programa Nacional de Direitos Humanos, os tratados e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos ratificados pelo Brasil e as recomendações dos/as Relatores/as da ONU e do Comitê Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCA).4

    Os procedimentos, metodologias, conceitos e variáveis temáticas apresentadas nos cadernos Conflitos no Campo Brasil foram construídos coletivamente, envolvendo as várias equipes de documentação e contando com a participação dos agentes de base da CPT e movimentos sociais que atuam no espaço rural. Alguns conceitos foram assumidos pelo setor a partir da existência deles em leis, declarações, estudos, censos.

    Como a CPT documenta e objetivos da sistematização dos dados

    Os registros são feitos por meio de pesquisas primária e secundária. Ressalta-se que para o centro de documentação da CPT são três os objetivos ao se fazer a coleta de dados. 1. Buscar as fontes primárias de informações para construir o banco de dados (a partir de relatos e de informações obtidas com os agentes de base da CPT. Além dos agentes da CPT, documentos oficiais, denúncias dos próprios camponeses e de movimentos sociais populares relatadas em seus veículos de comunicação e nas redes sociais, declarações, cartas assinadas, boletins de ocorrência, relatos repassados pelos movimentos sociais, igrejas, sindicatos e outras organizações e entidades diretamente ligadas à luta dos trabalhadores e trabalhadoras da terra.); 2. buscar fontes secundárias, por meio da clipagem virtual5 em várias mídias de conteúdo público (jornais, revistas, sites de notícias, blogs, rádios, televisão, redes sociais, podcasts e plataformas de streaming, como o YouTube, boletins e publicações de diversas instituições, partidos e órgãos governamentais, entre outros.); 3. processar, sistematizar e analisar os dados, transformando-os em registros de denúncias das violações de direitos cometidas contra os camponeses e suas organizações, bem como as resistências perpetradas pelos mesmos, na defesa dos seus modos de ser, e da produção e reprodução da vida.

    A pesquisa documental “[…] vale-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa” […] (GIL, 2007, p. 66). Existem documentos de primeira mão, que não receberam qualquer tratamento analítico, tais como: documentos oficiais, reportagens de jornal, cartas, contratos, diários, filmes, fotografias e gravações.

    Após a obtenção destes materiais o ato de “Documentar não é sinônimo de acumular textos e recortes […]. Não é o caso também de armazenar, sem critério […]”. Documentar é organizar o material que tem importância significativa para a pesquisa que se realiza. E essa importância está relacionada com o objetivo primeiro de seu estudo (ALMEIDA JÚNIOR, 2000, p. 111), que é fundamentar denúncias das violências sofridas pelos povos e comunidades do campo, bem como cuidar das memórias das resistências e lutas das várias identidades camponesas, para que as causas da vida não caiam no esquecimento.

    Por fim, o objeto de pesquisa do centro de documentação são os documentos enumerados anteriormente. Uma vez processados busca-se analisar os conflitose as violências sofridas em espaços rurais e urbanos que envolvam ações dos povos e comunidades da terra, das águas e suas organizações.

    Critérios de inclusão e exclusão

    Como primeiro critério de inclusão no banco de dados, tem-se que as informações são obtidas por meio de pesquisas primária e secundária, conforme descrição feita anteriormente. Uma vez identificando-se a existência de conflito nesses documentos a ocorrência é registrada.

    Quando se percebe que os números fornecidos pelas fontes secundárias não coincidem com os apurados pelas Secretarias Regionais da CPT, considera-se a fonte primária como dado de registro. Nos casos que um mesmo conflito possui várias ocorrências de resistências e violências no decorrer do ano, registra-se todos os acontecimentos. Porém, na soma total dos conflitos, o número de famílias será considerado apenas uma vez – que é o maior número do qual se teve informação. O mesmo não ocorre para as violências sistemáticas contra as famílias. Ou seja, se as famílias de uma mesma comunidade foram vítimas de destruição de casas, pistolagem, invasões etc. várias vezes durante o ano, na soma total considera-se todas as violências sofridas.

    Para registro de datas, quando não tem informação do dia do fato, registra-se no último dia daquele mês e ano, caso não tenha informação do mês, registra-se no último dia daquele ano, ou na data do documento pesquisado.

    Situações de violência e conflitos que envolvam povos indígenas e comunidades tradicionais, como quilombolas, pescadores, caiçaras, dentre outros, mesmo em espaços urbanos, mas que vivenciam modo de vida tradicional são registrados e contabilizados.

    No registro das manifestações que são prolongadas (marchas, jornadas etc.), para a contagem dos participantes, considera-se o maior número de pessoas informadas, na última data e, registram-se os atos realizados em cada lugar, durante o trajeto ou o período da manifestação.

      Registram-se os conflitos que ocorreram durante o ano em destaque. Conflitos antigos e não resolvidos só figuram no relatório se tiverem algum fato novo que indique a continuidade dos mesmos.

      São excluídos dos registros

      1. Casos de violência, inclusive assassinatos, que acontecem no âmbito rural e não tenham relação com conflitos pela disputa, posse, uso ou ocupação da terra, ou pelo acesso ou uso da água, ou na defesa de direitos por trabalhos realizados no campo;
      2. Casos de conflitos pela posse, uso ou ocupação da terra em áreas urbanas. Excetuam-se os casos em que a disputa pela terra se dá por povos indígenas e comunidades tradicionais (quilombolas, pescadores artesanais, etc…) mesmo que se dê em área urbana, defendem um modo de vida tradicional.
      3. Conflitos entre latifundiários ou grandes empresários do agronegócio; e,
      4. Casos de trabalho escravo em atividades urbanas (são citados na publicação como nota de rodapé).

      O banco de dados

      As informações são organizadas por meio de formulários temáticos do Gaia6 – Banco de Dados dos Conflitos no Campo – Comissão Pastoral da Terra – e são sistematizadas em tabelas, gráficos e mapas dos conflitos. De cada conflito elabora-se textos de históricos, os quais reúnem as informações que lhe são características, possibilitando fundamentações de análises.

      Importante destacar que o processo de inserção e revisão dos conflitos no campo é contínuo. Entre outras dimensões, isso quer dizer que após cada publicação anual é comum ocorrer registros de anos anteriores, dos quais o Centro de Documentação da CPT não teve conhecimento na época do fato. Assim sendo, a partir do Caderno de Conflitos ano 2020, tendo em vista instrumentos facilitadores do Gaia, a tabela 1 (Comparação dos Conflitos no Campo Brasil), será publicada a partir de registros atualizados no banco de dados, e não mais de informações das publicações anuais. Dessa forma, ao compararmos a Tabela 1 deste ano com os relatórios Conflitos no Campo Brasil de edições anteriores, iremos notar algumas diferenças: é esperado que o número de conflitos, assassinatos, hectares etc. sejam maiores do que os publicados nos relatórios passados. Isso se explica pois há a inserção de conflitos após o fechamento do relatório. Porém, excepcionalmente o número de Pessoas Envolvidas em Conflitos por Terra teve uma redução em relação a alguns dos anos anteriores. Foi verificada uma inconsistência neste cálculo nos cadernos até 2018. A metodologia atual considera, em cada conflito, apenas o maior número de famílias registrado no ano. Assim, casos em que um determinado ano tenha havido uma ocupação com 500 famílias, e um despejo com 600 famílias, o número de famílias considerados neste conflito no ano é de 600, a título de exemplo. Outro ajuste metodológico que incide na Tabela 1 é que até 2018, considerava-se 5 pessoas por família. De 2019 em diante, passou-se a considerar 4 pessoas por família.

      A composição das famílias

      O Centro de Documentação acolhe o conceito de família apresentado pelo IBGE em seu censo demográfico de 2010. “Família é conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar, ou pessoa que mora só em uma unidade domiciliar”. […]. “Consideram-se como famílias conviventes as constituídas de, no mínimo, duas pessoas cada uma, que residam na mesma unidade domiciliar (domicílio particular ou unidade de habitação em domicílio coletivo) (PNAD 1992, 1993, 1995, 1996)”. (IBGE, 2010).

      Estrutura do Banco de Dados – Gaia

        Do Banco de Dados retiram-se tabelas específicas para a página eletrônica da CPT, bem como para a publicação anual impressa e atendimento à pesquisa.

        Tabelas disponibilizadas na página eletrônica:

        Áreas em conflito, Ocorrências de conflitos por terra, Ocupações/Retomadas e Acampamentos. Os dados das três últimas tabelas são agrupados em uma tabela síntese denominada “Violência contra Ocupação e a Posse”,compreendendo o eixo Terra.

        Além do eixo Terra, disponibiliza-se tabelas com a listagem dos Conflitos pela Água, dos Conflitos Trabalhistas (Trabalho Escravo, Superexploração e Ações de Resistência), de assassinatos, tentativas de assassinatos e ameaças de morte. Por fim, uma tabela síntese denominada Violência contra a Pessoa, na qual além dos dados das tabelas anteriores constam as mortes em consequência de conflito7, torturas, prisões, agressões físicas/ferimentos.

        Por último, uma tabela em que estão registradas as Manifestações de Luta feitas pelos diferentes movimentos sociais ou outras organizações durante o ano.

        Estrutura do Relatório Impresso

        Os dados coletados e organizados pela CPT são publicados anualmente, desde 1985, em um relatório impresso que tem por título Conflitos no Campo Brasil. A partir de 2008, ele sofreu algumas alterações e ficou com a seguinte estruturação:

        Quatro tabelas detalhadas e organizadas por Estado em ordem alfabética e seis tabelas sínteses agrupadas nas cinco regiões geográficas definidas pelo IBGE.

        TABELA 1 – Comparação dos Conflitos no Campo

        É uma síntese do último decênio. Dispõe os dados de cada tema: terra, água, trabalho e outros (quando tem casos de conflitos em tempos de seca, garimpo, etc) e o total dos conflitos no campo brasileiro. Ressalta-se: a partir do Caderno de Conflitos ano 2020, tal tabela conterá registros atualizados no banco de dados, e não mais informações das publicações anuais, conforme mencionado anteriormente.

        TABELA 2 – Conflitos no Campo Brasil

        Esta tabela registra detalhadamente, os conflitos por terra, trabalhistas, água e outros se houver, com as seguintes informações: município, nome do conflito, data, número de famílias ou de pessoas envolvidas e um campo com informações específicas conforme o tema.

        TABELA 3 – Violência contra a Ocupação e a Posse

        É a síntese da soma das ocorrências dos Conflitos por Terra, Ocupações e Acampamentos por Estado, o número de famílias envolvidas em cada bloco, a área, o número de famílias expulsas, despejadas, ameaçadas de despejo, ou que sofreram tentativa ou ameaça de expulsão, o número de casas, roças e bens destruídos, e o número de famílias que estão sob ameaças por pistoleiros. Além destes registros, a Tabela 3 também apresenta o número de famílias que sofrem algum tipo de violência com invasões de suas terras ou posses por parte de grileiros, fazendeiros, mineradoras, madeireiras etc.

        TABELA 4 – Terra

        Sistematiza o eixo terra organizado em três blocos: Conflitos por Terra, Ocupações e Acampamentos. Contém as seguintes informações:número de ocorrências de conflitos por terra, ocupações, acampamentos, seguidas do número de famílias.

        TABELA 5 – Água

        Retrata a síntese dos conflitos pela água por Estado, com as seguintes informações: número de ocorrências de conflitos e quantidade de famílias envolvidas.

        TABELA 6 – Trabalho

        Sintetiza os conflitos trabalhistas por Estado, com dois blocos de informações: 1. Trabalho Escravo Rural: consta o número de ocorrências, quantidade de trabalhadores envolvidos na denúncia e ou resgatados, número de crianças e adolescentes. 2. Superexploração: número de ocorrências, quantidade de trabalhadores envolvidos na denúncia e ou resgatados, número de crianças e adolescentes.

        TABELA 7 – Violência contra a Pessoa

        Agrupa a quantidade das ocorrências registradas em todos os eixos de conflitos no campo,entre estes Terra, Água, Trabalho, o número de pessoas envolvidas e as violências sofridas pelos trabalhadores e trabalhadoras: os assassinatos, as tentativas de assassinato, as mortes em consequência de conflitos, as ameaças de morte, bem como as torturas, prisões e agressões.

        TABELAS 8, 9 e 10 – Assassinatos, Tentativas de Assassinato, Ameaçados de Morte

        Contém as seguintes informações: município, nome do conflito, data, nome da vítima, quantidade, idade e categoria da vítima. A partir do ano de 2022, as tabelas referentes às tentativas de assassinato e ameaças de morte passaram a ser publicadas sem a coluna com o nome da vítima, levando em consideração quesitos relacionados à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

        TABELA 11 – Manifestações

        Relatório síntese por Estado. Informa o número de ocorrências e a quantidade de manifestantes.

        As tabelas vêm acompanhadas de textos de análise produzidos por professores de diferentes universidades e pelos agentes pastorais da CPT, religiosos ou algum outro especialista na temática.

        A última parte do Conflitos no Campo reproduz notas emitidas pela CPT, só ou em parceria, ou outros documentos, sobre as diferentes situações de conflito e de violação dos direitos humanos.

        Referências

        ALMEIDA JÚNIOR, João Baptista de. O estudo como forma de pesquisa. In.: Construindo o saber. CARVALHO, Maria Cecília de (org). 10. ed. Campinas – SP, Papirus Editora. 2000.

        BELLEN, Hans Michael van. Desenvolvimento sustentável: diferentes abordagens conceituais e práticas. In: ______. Indicadores de sustentabilidade: uma análise comparativa. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2006.

        BRASIL. Código Penal Brasileiro, Lei nº 10.803, de 11.12.2003. Altera o art. 149 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.803.htm

        GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5 ed. São Paulo. Editora Atlas. 2007.

        INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRÁFIA E ESTATÍSTICA (PNAD). Senso Demográfico de 2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/conceitos.shtm

        LINS, Regina Navarro. Amor na vitrine – um olhar sobre as relações amorosas contemporâneas. E ed. Rio de Janeiro. Editora Best Seller. 2021.

        MONTIBELLER FILHO, G. O mito do desenvolvimento sustentável. Meio ambiente e custos sociais no moderno sistema produtor de mercadorias. Santa Catarina: Editora da UFSC. 2004.

        PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. O desafio ambiental. Coleção Os porquês da desordem mundial. Organização, SADER, Emir. Rio de Janeiro-São Paulo. Editora Record, 2004.

        Notas de Rodapé

        1Além das categorias citadas neste parágrafo, constam outras seguintes: assentados, sem-terra, posseiros, pequenos proprietários, parceleiros, pequenos arrendatários, trabalhador rural, garimpeiros, caiçaras, camponeses de fundo e fecho de pasto, faxinalenses, geraizeiro, marisqueiras, pescadores, quilombolas, retireiros, ribeirinhos, seringueiros, vazanteiros, extrativistas (castanheiros, palmiteiros, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros), povos indígenas etc. A categoria atingidos por barragens inclui comunidades tradicionais, ou assentados, sem-terra, indígenas etc. A partir de 2020 houve alterações na categorização de Lideranças.

        2 Conforme publicação Amor na Vitrine, autoria de Regina Navarro Lins, o sexo é biológico (homens, mulheres, intersexuais), a sexualidade está relacionada ao desejo de cada pessoa e o gênero é como nos percebemos e queremos ser identificados no mundo.

        3 Os conceitos relacionados às violências estão sistematizados no Tutorial do Centro de Documentação da CPT.

        4 Maiores informações sobre a Plataforma ver no site os conceitos fundamentais dos Direitos humanos: http://www.dhescbrasil.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=330:quem-somos&catid=46:organizacao&Itemid=134

        5 O serviço de clipagem virtual no Centro de Documentação da CPT iniciou-se em abril de 2004. Antes, fazia-se recortes de revistas e jornais impressos no próprio Centro de Documentação da entidade. Sendo que, o mesmo trabalho era feito nas Secretarias Regionais da CPT e as cópias dos documentos clipados eram remetidas para a Secretaria Nacional via agência dos Correios. Além disso, a CPT tinha contrato com empresa de clipagem, a qual enviava mensalmente para a Secretaria Nacional um pacote com documentos relacionados aos conflitos no campo e à questão agrária.

        6 A equipe do Centro de Documentação da CPT começou a registrar conflitos no Gaia a partir do dia 27 de julho de 2020.

        7 Tem a morte como resultado, porém a mesma não decorre do homicídio em si, mas de outras violências no contexto do conflito. Por exemplo: numa ação de despejo, alguém infarta e vem a óbito.