Dias quentes em Belém: Território de resistência e o legado político e simbólico da COP 30

Entre o calor extremo e a insurgência dos povos, o que Belém ensinou ao mundo sobre futuro climático. Leia no oitavo artigo da série Para “adiar o fim do mundo”: as verdadeiras soluções verdes brotam da terra

Rodrigo Correia*
Para ‘adiar o fim do mundo’ | Vozes da terra na COP30**

Debaixo de Belém sob sol forte e calor extremo, delegações chegam a Blue Zone no primeiro dia da COP 30 em Belém. Novembro, 2025. Foto: Rodrigo Correia.
Debaixo de Belém sob sol forte e calor extremo, delegações chegam a Blue Zone no primeiro dia da COP 30 em Belém. Novembro, 2025. Foto: Rodrigo Correia.

Uma coisa é certa: a COP em Belém esquentou – e literalmente. Mas não falo aqui apenas da recepção pulsante e acalorada dos paraenses, sempre prontos a abrir as portas da cidade com alegria e hospitalidade. Refiro-me ao calor extremo que marcou os dias do evento. Se o mundo inteiro não sentiu, nós sentimos: as altas temperaturas transformaram cada deslocamento, cada caminhada entre pavilhões e cada debate ao ar livre em uma lembrança física da crise climática. Era como se a cidade gritasse junto com os povos da Amazônia aquilo que já sabemos, mas insistimos coletivamente em adiar: a crise climática não é uma abstração e nem uma coisa do futuro, ele é real e já está acontecendo.

Esse calor não foi apenas um fenômeno meteorológico; foi um símbolo. Em meio ao encontro global que discutia limites planetários, justiça ambiental e caminhos para uma transição climática justa, Belém ofereceu ao mundo uma experiência sensorial do que significa viver na linha de frente. Os “dias quentes” tornaram-se uma metáfora viva do momento político, social e ambiental na cidade.

O mundo esperava uma conferência marcada por discursos de transição ecológica, anúncios governamentais e negociações de clima que pouco saem do papel. Mas, fora dos pavilhões oficiais, foi a própria cidade, suas ruas, seus bairros, seus rios e seus povos – que mostrou o que realmente está em disputa quando falamos sobre futuro climático.

Ativistas e movimentos sociais do Brasil e da África participam de painel na Casa da COP do Povo. Novembro, 2025. Foto: Rodrigo Correia
Ativistas e movimentos sociais do Brasil e da África participam de painel na Casa da COP do Povo. Novembro, 2025. Foto: Rodrigo Correia

Belém se tornou, durante aqueles dias, um território de resistência. E no centro dessa resistência, um lugar de destaque: a Casa da COP do Povo, que emergiu como um contraponto vivo, insurgente e comunitário ao modelo de conferência tradicional.

Organizada pelo Instituto Zé Cláudio e Maria e a organização Global Witness em parceria com movimentos sociais, coletivos, organizações de base e povos originários, a Casa tencionou a narrativa oficial da COP ao trazer para o centro, conflitos agrários, violência contra defensores da terra, impactos agro-hidro-minerário e a crítica profunda ao sistema capitalista.

Mais do que acolher debates, a Casa da COP do Povo funcionou como um organismo vivo. Por lá passaram lideranças, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, agentes pastorais, pesquisadores, jovens periféricos, comunicadores, artistas e defensores da Amazônia que carregam, em suas histórias, os impactos e as respostas reais à crise climática. Ali, as denúncias de grilagem, contaminação dos rios, avanço da mineração, violência no campo e destruição dos modos se misturavam com cantos, celebrações e saberes ancestrais.

Ritualística de abertura do Tribunal do Povos, realizado pela COP do Povo, no auditório do Ministério Público Federal, que se tornou um território de resistência. O tribunal que denunciou e julgou crimes ambientais e de direitos humanos cometidos por grandes empresas e pessoas em diversos territórios espalhados pelo mundo. Novembro, 2025. Crédito: Rodrigo Correia
Ritualística de abertura do Tribunal do Povos, realizado pela COP do Povo, no auditório do Ministério Público Federal, que se tornou um território de resistência. O tribunal que denunciou e julgou crimes ambientais e de direitos humanos cometidos por grandes empresas e pessoas em diversos territórios espalhados pelo mundo. Novembro, 2025. Crédito: Rodrigo Correia

Enquanto isso, nos espaços oficiais da COP, a presença maciça de governos, empresas, consultorias e instituições multilaterais revelava outro tipo de disputa: a corrida por narrativas, recursos e legitimidade. Foi justamente nesse contraste que Belém expôs ao mundo um choque de paradigmas. De um lado, soluções tecnocráticas que prometem descarbonização sem tocar nos pilares da desigualdade. De outro, as vozes da COP do Povo, que reafirmavam algo simples e radical: não há justiça climática sem justiça social.

Esse contraste não passou despercebido por quem visitou a cidade. Pela primeira vez, muitos delegados internacionais foram confrontados com uma Amazônia que não cabe no imaginário folclórico ou no discurso do “pulmão do mundo”.

Encontraram uma Amazônia urbana, complexa, marcada por conflitos e, ao mesmo tempo, profundamente viva. Encontraram uma Belém que não se apresentou apenas como anfitriã da COP, mas como protagonista política de um debate que há décadas tenta deslocar o centro das decisões para os territórios que mais sentem os efeitos da crise climática.

A COP do Povo, nesse sentido, cumpriu um papel que o evento oficial jamais conseguiria cumprir: criar um espaço onde a Amazônia falava por si mesma, em seus próprios termos, com sua própria linguagem e a partir de suas dores e potências. E isso, mais do que qualquer anúncio diplomático, é parte do legado que a COP 30 deixa na cidade.

A renomada ativista indígena brasileira, indigenista e fundadora da Associação Kanindé em Rondônia Neidinha Suruí fala durante painel na Casa da Cop do Povo. Novembro, 2025. Crédito: Rodrigo Correia.
A renomada ativista indígena brasileira, indigenista e fundadora da Associação Kanindé em Rondônia Neidinha Suruí fala durante painel na Casa da Cop do Povo. Novembro, 2025. Crédito: Rodrigo Correia.

Mas o legado não se limita ao campo simbólico. Ao reunir movimentos, lideranças e organizações que raramente se encontram em escala tão ampla, Belém viu emergir alianças estratégicas, redes de solidariedade e articulações que seguirão vivas. A cidade se tornou palco de encontros que não acontecem nos corredores oficiais, mas que realmente movem a história: encontros entre povos, entre lutas, entre visões de mundo.

E é justamente aí que a COP 30 revela sua faceta mais profunda em Belém: não como um evento isolado, mas como catalisador de processos que já estavam em curso – e que, nos “dias quentes” da conferência, ganharam visibilidade, força e continuidade.

Ali, a floresta não era discutida como commodity, mas como lar; e os povos não apareciam como “stakeholders”, mas como sujeitos políticos.

O território falando por si

Adriano Karipuna, liderança do território Karipuna em Rondônia, durante o Tribunal dos Povos, realizado pela COP do Povo, no auditório do Ministério Público Federal em Belém. Novembro, 2025. Crédito Rodrigo Correia
Adriano Karipuna, liderança do território Karipuna em Rondônia, durante o Tribunal dos Povos, realizado pela COP do Povo, no auditório do Ministério Público Federal em Belém. Novembro, 2025. Crédito Rodrigo Correia

A realização da COP transformou Belém em palco global, mas quem ditou o ritmo do debate não foram apenas chefes de Estado ou representantes de grandes empresas. Foram os povos, povos indígenas e quilombolas, os atos de juventudes periféricas, as assembleias populares e os debates realizados na Casa da COP do Povo.

Neste espaço alternativo, as vozes que historicamente sofrem os efeitos diretos da crise climática puderam falar sem mediação – e isso redefiniu o que a COP significou para a cidade.

A Casa funcionou como um território autônomo articulado pela base, onde cada atividade, cada mesa e cada encontro revelavam que a Amazônia é mais que um bioma: é uma disputa de projetos de mundos. Enquanto a conferência oficial se limitava às negociações, a Casa apresentava práticas, saberes e alternativas concretas vindas dos territórios – agroecologia, manejo comunitário, resistência às invasões, defesa de rios e modos de vida.

Pollyana Soares, militante do Movimento sem Terra (MST) durante o Tribunal dos Povos, realizado pela COP do Povo, no auditório do Ministério Público Federal em Belém. Novembro, 2025. Crédito: Rodrigo Correia
Pollyana Soares, militante do Movimento sem Terra (MST) durante o Tribunal dos Povos, realizado pela COP do Povo, no auditório do Ministério Público Federal em Belém. Novembro, 2025. Crédito: Rodrigo Correia

Belém sob múltiplas tensões

A presença da COP também explicitou as contradições de Belém: a pressão do agronegócio para se posicionar como “sustentável”, a tentativa de grandes empresas de capturar a narrativa amazônica e transformar carbono em mercado, interesse internacional por soluções tecnológicas que ignoram o impacto cotidiano da violência no campo.

A COP do Povo confrontou diretamente essas tentativas, reafirmando que não há solução climática sem justiça social.

Ao mesmo tempo, Belém revelou sua vocação histórica de cidade encruzilhada, onde tradições ribeirinhas, Memórias de Resistência Negra, culturas indígenas e movimentos populares convivem, disputam e se reinventam. A COP apenas ampliou essa potência, colocando sob luz mundial a força dos povos que resistem há séculos à expropriação.

O que realmente fica depois do evento?

O legado da COP 30 em Belém não pode ser medido apenas pelos anúncios oficiais, eventos diplomáticos ou compromissos internacionais. O legado mais profundo é político e simbólico, e está enraizado nos processos desencadeados pela COP do Povo, a Cúpula dos Povos, COP das Baixadas e outras articulações.

Entre os principais elementos que ficam:

  • Redes fortalecidas entre povos originários, movimentos sociais e organizações de direitos humanos.
  • Denúncias visibilizadas sobre conflitos no campo, expulsões, assassinatos e criminalização de lideranças.
  • Uma narrativa alternativa consolidada, em que a Amazônia deixa de ser vista como exploração ou ativo financeiro e passa a ser reconhecida como território de vida.
  • A afirmação de que as soluções para “adiar o fim do mundo” já existem e vêm da terra, como dizem os próprios povos.

Se a COP oficial deixa relatórios e promessas, a Casa deixa alianças, práticas e continuidade.

O sentido simbólico da resistência

Talvez o grande legado da COP 30 seja justamente a reafirmação de que a Amazônia não é apenas cenário de debates: ela é um sujeito político.

A COP do Povo fez o mundo olhar para esse sujeito com mais atenção – e, muitas vezes, com desconforto. Afinal, ali se falava de futuro a partir da ancestralidade, da coletividade e da defesa radical da vida, e não a partir de interesses de mercado.

Belém se mostrou, assim, mais do que uma cidade-sede: mostrou-se um centro de produção de sentidos, onde o que está em jogo não é apenas o clima, mas a própria noção de mundo possível.

E quando a COP vai embora?

Quando as delegações partiram, algo permaneceu: uma sensação de que Belém se tornou um espelho para o planeta – um espelho que reflete tanto a beleza quanto a violência, tanto as alternativas quanto às ameaças, tanto a ancestralidade quanto o futuro.

O território continua pulsando, e a resistência também.

E a Casa da COP do Povo segue como símbolo de que, quando os povos se articulam, o mundo realmente escuta – ainda que precise aprender a entender.

* Rodrigo Correia é fotógrafo documentarista, fotojornalista e artista visual atuante na Amazônia. Estudante da natureza e aprendiz da terra, dedica sua vida à causa socioambiental, produzindo narrativas visuais que defendem a floresta e seus povos.

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**Idealizada e organizada pela Comissão Pastoral da Terra com o apoio de parceiros da luta camponesa, a série ‘Para “adiar o fim do mundo”: as verdadeiras soluções verdes brotam da terra’ se propõe a articular debates importantes rumo à COP 30: conflitos no campo, os impactos do agro-hidro-minero-negócio e do capitalismo “verde” sobre a natureza e a humanidade e a defesa da sociobiodiversidade. Os artigos trazem as experiências, saberes e as saídas insurgentes para a crise climática construídas nos territórios e comunidades camponesas, tradicionais e originárias do Brasil; e se alimentam dos dados de conflitos no campo produzidos há quarenta anos pela CPT.

Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil

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