Ventos para a vida, não para a morte
Os parques eólicos, que se multiplicam pelo semiárido brasileiro como a promessa de energia “limpa” e renovável, provocam danos irreversíveis aos povos da terra e à natureza. Veja no quinto artigo da série Para “adiar o fim do mundo”: as verdadeiras soluções verdes brotam da terra
João do Vale*
Para ‘adiar o fim do mundo’ | Vozes da terra na COP30**
Chega a noite e Maria1, antes de ir para a cama, repete o ritual que a tem acompanhado nos últimos dez anos: confere se as portas estão devidamente fechadas, toma os três medicamentos que talvez lhe ajudem a dormir e pergunta a si mesma se aquela vida, que tinha antes da chegada das torres, um dia irá voltar. Apesar dos questionamentos que se faz, ela mesma já sabe a resposta, sabe que o mal que atingiu a ela, sua família e praticamente toda a sua comunidade provocou sequelas irreversíveis.
Na comunidade rural de Sobradinho, em Caetés (PE), um estudo da Universidade de Pernambuco (UPE) e da Fundação Oswaldo Cruz constatou que 70% da população usa medicação contínua e 64% tomam remédios para dormir, devido aos distúrbios provocados pelos aerogeradores. Os moradores desenvolveram sintomas das chamadas Síndrome da Turbina Eólica e da Doença Vibroacústica, causadas pela exposição aos ruídos e infrassons por tempo prolongado da rotação das hélices.
Maria percebe, então, que aquelas doenças que chegaram junto com o parque eólico irão os acompanhar para onde forem. “Só fica o barulho delas dentro do meu ouvido. Posso ir para onde eu for, que o barulho fica no meu ouvido. Não sai, não sai”, relatou uma moradora. Aquelas pessoas que foram embora por não mais suportar o sofrimento, não irão voltar. Na verdade, a própria comunidade logo não existirá. O mesmo estudo da FioCruz e UPE afirma que 57% dos moradores entrevistados da comunidade de Sobradinho têm interesse de deixar o território. A parte que ainda não foi embora coleciona um cardápio de doenças e terá de escolher entre a expulsão e a morte – se é que a expulsão já não é uma morte de olhos abertos.

Por esses sertões, os parques eólicos se multiplicam feito peste e tem deixado rastros de dor. Quem diria que aquelas pessoas que o latifúndio não tinha conseguido expulsar, que os efeitos da indústria da seca não tinham feito desistir, um dia teriam suas vidas sacrificadas em nome de uma mentira que é a transição energética. O Brasil tem, desde muito tempo, uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo. As hidrelétricas têm muitos problemas, mas não o de emitir gases de efeito estufa.
Aqui, ao contrário da maioria dos países, os gases que provocam o efeito estufa não são emitidos pela queima de combustíveis fósseis para a gerar eletricidade. A nossa contribuição para aquecer o mundo vem do insistente destrutor agronegócio. É o desmatamento, as queimadas, a criação extensiva de bois e o uso de agrotóxicos que emitem a maior parte dos gases de efeito estufa nesse lugar que veio a ser chamado de Brasil. Pensar uma transição energética de uma forma honesta e coerente, é pensar a mudança de nosso modelo agrário, fazer o que nunca nenhum governo fez: priorizar o povo camponês e deixar de sustentar o agronegócio.
O potencial de violência contra os territórios que os parques eólicos possuem, a capacidade de destruir experiências comunitárias em lugares tão diferentes e tão amplos é algo nunca visto no semiárido. Quase todos os parques eólicos estão no Sertão e são uma maneira de enriquecer ainda mais os que já são muito ricos. Em consequência, são também um jeito de fazer sofrer ainda mais aqueles grupos que já carregam na história de seu povo o sofrimento, que é de que o capitalismo se alimenta.
É profundamente revoltante perceber que o dinheiro para poucos e o sofrimento para muitos é algo normalizado, que acontece sem escândalos. Tem comunidade sendo destruída na beira do mar, tem comunidade desaparecendo nos altos das serras, tem território indígena adoecendo em um lugar, tem comunidade quilombola sendo ameaçada em outro. Os parques eólicos são, ao mesmo tempo, um projeto econômico e uma tecnologia de guerra.
Maria, sua família e sua comunidade são as moedas de troca que o governo tem para oferecer. Se já existem mais de mil parques eólicos instalados no Brasil, de acordo com a Associação Brasileira de Energia Eólica, se apropriando de milhares de hectares de territórios sertanejos, quantas Marias, suas famílias e suas comunidades devem existir nesse mesmo sofrimento? O Estado brasileiro tem sido criminoso com sua omissão diante de tantas evidências de que a transição energética, que com orgulho propagandeia pelo mundo, é, na verdade, mais uma modernização da violência colonial, a continuação do projeto até agora bem-sucedido de nos matar em troca de dinheiro.
Há quem chame isso de necropolítica2. A situação fica mais vergonhosa quando a gente percebe que, apesar de todo discurso, não há um projeto de abandono da exploração de combustíveis fósseis. A insistência do governo brasileiro em explorar petróleo na foz do Amazonas é um exemplo disso. Portanto, mesmo que a gente precisasse de uma substituição, não é o que está acontecendo. O que temos é uma adição, uma soma de fontes energéticas, uma tentativa de explorar a natureza com todas as possibilidades que a tecnologia oferece.

Porém, seria uma ilusão achar que o capitalismo não iria se apropriar do discurso ambientalista e que os povos do campo teriam suas vidas respeitadas em um projeto político idealizado e executado pelos poderosos do mundo. O que cabe a nós é insistir na vida, no projeto de mundo que acreditamos e sabemos que apenas virá de nós mesmos, dos de baixo. Aqui, em Pernambuco, temos produzido e vivenciado uma experiência muito bonita, que chamamos de “Escola dos Ventos”.
A Escola dos Ventos passou a ser mais conhecida quando, em fevereiro deste ano, vários jornais noticiavam que um grupo de camponeses e indígenas teriam ocupado um prédio público em Recife, exigindo do governo do estado de Pernambuco a paralisação de dois parques eólicos na região agreste e o compromisso de que não concederia nenhuma licença que facilitasse a instalação de empreendimentos energéticos no território do povo indígena Kapinawá. A ocupação foi resultado de um longo processo de formação, reflexão e articulação em torno da Escola dos Ventos. Ao final da ocupação, retornamos para nossos territórios com a licença de funcionamento do Parque Eólico São Clemente cassada e com a primeira paralisação de um parque eólico garantida através da luta popular. Para nós, foi uma prova de que apenas com a insistência e compromisso podemos tocar uma luta que corre o risco de ser vitoriosa.
Desde a ocupação, muita coisa aconteceu, desde outras lutas vitoriosas, até uma decisão judicial que tem permitido que o parque eólico São Clemente funcione sem licença ambiental. A aliança entre famílias impactadas por parques eólicos, a Comissão Pastoral da Terra e grupos de pesquisa ligados à universidade – que é a composição da Escola dos ventos – tem nos dado coragem e esperança. Na Escola, temos aprendido que o Estado faz e fará de tudo para proteger os interesses econômicos das empresas. E que a nós cabe insistir na solidariedade entre os que sofrem, na teimosia rebelde e na crença de que só a luta nos salvará das hélices da morte e outros projetos que promovem o Ecogenocídio dos povos da terra e seus territórios.
1 Maria foi o nome adotado para representar uma camponesa do agreste pernambucano, como tantas e tantos, que sofre com os impactos dos parques eólicos em seu território em conflito.
2 Achille Mbembe, 2011, propõe como necropolítica as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte.
* João do Vale é membro da Comissão Pastoral da Terra. Educador Popular. Integrante da Escola dos Ventos. Doutor em Sociologia e Direito. Professor de direito na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Leia também:
>> I – Berço das águas do Brasil e América do Sul, o Cerrado e seus povos ficam fora da COP30
>> II – Da terra-território em chamas à COP30: o Cerrado grita, o mundo precisa escutar
>> III – Juventudes e Diversidades na linha de frente da justiça territorial e climática
>> IV – A geopolítica da transição energética e militar baseada na Mineração
**Idealizada e organizada pela Comissão Pastoral da Terra com o apoio de parceiros da luta camponesa, a série ‘Para “adiar o fim do mundo”: as verdadeiras soluções verdes brotam da terra’ se propõe a articular debates importantes rumo à COP 30: conflitos no campo, os impactos do agro-hidro-minero-negócio e do capitalismo “verde” sobre a natureza e a humanidade e a defesa da sociobiodiversidade. Os artigos trazem as experiências, saberes e as saídas insurgentes para a crise climática construídas nos territórios e comunidades camponesas, tradicionais e originárias do Brasil; e se alimentam dos dados de conflitos no campo produzidos há quarenta anos pela CPT.
Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil