Nota pública | Manifesta preocupação com os rumos do Programa de Proteção a Defensores/as de Direitos Humanos no Mato Grosso
As organizações da sociedade civil e os movimentos sociais abaixo assinados vêm a público manifestar profunda preocupação com o Processo Seletivo para a escolha da organização que executará o Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas de Mato Grosso.
Recordamos que a construção e consolidação do Programa no Mato Grosso decorreram da mobilização das entidades históricas que defendem direitos humanos, como o Fórum Estadual de Direitos Humanos e da Terra- FDHT, a Comissão Pastoral da Terra (CPT – Mato Grosso), Conselho Indigenista Missionário (CIMI-Mato Grosso) Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennès, Fórum Nacional das Entidades Gestoras de Programas de Proteção (FNEG), Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e outras organizações do campo popular. Estas instituições foram fundamentais para a criação de um Programa que dialogasse diretamente com as necessidades das lideranças protegidas, pautando-se na confiança e proximidade.
O Movimento de Direitos Humanos no Mato Grosso, em sua versão inicial, com a organização do Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade, em 07 de julho de 1984, dinamizou a prática de sensibilização, proteção, formação, organização, denúncias e mobilização em direitos humanos. Esta dinâmica de proteção popular sem a participação do Estado salvou muitas vidas por mais de duas décadas. Com o advento da Constituição Federal de 1988, abriram-se possibilidades de diálogo entre Sociedade e Estado. Conforme a Constituição, cabe ao Estado cuidar da vida e dignidade de todo o povo brasileiro.
Neste contexto histórico, é importante destacar que no período de 15 a 18 de julho de 1999 foi realizada a Conferência Estadual de Direitos Humanos em Cuiabá, onde foram apresentadas propostas de elaboração do Programa Estadual de Direitos Humanos, com o tema “Construindo uma Proposta para Mato Grosso”. A 4ª Conferência de Direitos Humanos em setembro de 2008 teve como tema da palestra magna os programas de proteção.
Nos anos de 2008 e 2011 foi encaminhado ao Ministério Público Estadual todas as demandas e preocupações das organizações de direitos humanos com a violência enfrentadas por defensores (as) de direitos humanos no estado de Mato Grosso – “Cumpre destacar que há décadas a violência no campo contra os(as) trabalhadores(as) rurais, indígenas, quilombolas e os(as) que defendem suas causas em prol dos direitos humanos, vem aumentando, sendo que a impunidade impera na maioria gritante dos crimes. Tal fato é de fácil constatação ao se analisar que entre os anos de 1985 a 2010 ocorreram 115 assassinatos, contudo, destes, somente 03 casos foram a julgamento1. A lista dos ameaçados de morte no Estado de Mato Grosso no período de 2000 a 2010 também demonstra que o nome de 114 pessoas que foram ou estão sendo ameaçadas, dentre estes, além dos trabalhadores(as) rurais, encontram-se indígenas, quilombolas, religiosos(as), lideranças, sem-terras etc. Desta lista, 06 pessoas foram assassinadas neste período.”2
Em 2012, parecia que o governo finalmente iria implantar os programas de proteção. Foi nomeada uma comissão para elaborar um projeto de lei, a qual entregou uma proposta em outubro do mesmo ano. Também em julho, aproveitando a Caravana de Direitos Humanos, o Governador assinou um termo de parceria com o Governo Federal para a implantação dos três programas em Mato Grosso, sendo eles: Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas-Provita, Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes-PPCAAM e Programa de Proteção aos Defensores/as de Direitos Humanos-PPDDH.
A sociedade civil de Mato Grosso acompanhou de perto todas as etapas, inclusive foi testemunha no processo para relatar a necessidade dos programas de proteção.
A Ação Civil Pública de nº 21992-62.2010.811.0041, que determinou e condenou o Estado de Mato Grosso a instituir o Programa de Proteção aos Defensores Direitos Humanos tendo em vista a grave situação de ameaças enfrentadas pelos defensores de direitos humanos devido sua luta por direitos humanos também determinou que o Fórum de Direitos Humanos e da Terra e o Conselho Estadual de Direitos Humanos monitorem a implementação dos Programas de Proteção em Mato Grosso.
A efetividade do programa de proteção exige relações de confiança entre aqueles/as a serem protegidos e as condições de proteção. A confiança entre a entidade gestora e as pessoas protegidas é a base essencial para o sucesso da proteção e a garantia do direito à vida dessas pessoas. Essa confiança não se constrói imediatamente, mas é fruto de um legado histórico de atuação conjunta, diálogo e respeito às especificidades do contexto.
Reforçamos ainda que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) assegura que o titular pode revogar seu consentimento a qualquer momento, o que escancara o desafio da adesão e a necessidade de garantia de um ambiente seguro e transparente para a gestão dessas informações sensíveis.
O exemplo recente ocorrido no Pará é ilustrativo sobre os riscos que envolvem a perda de confiança: o episódio de espionagem legal contra defensoras e defensores de direitos humanos promovido pelas forças públicas do estado. Tal cenário reforça nossas preocupações quanto à fragilidade e descompasso que podem vir a comprometer a legitimidade e a segurança do programa no Mato Grosso.
É urgente que os órgãos públicos responsáveis reflitam sobre a importância do Programa e sobre a necessidade de que seja escolhida uma organização gestora do campo histórico e político dos direitos humanos que tenha legitimidade entre os/as defensores/as e que esteja inserida efetivamente nos processos desenvolvidos no Estado do Mato Grosso, evitando transformar o programa em um instrumento desprovido de sentido prático e relevância real para os/as defensores/as.
Para que o Programa de Proteção cumpra seu papel e garanta a segurança e proteção integral do sujeito em proteção, destacamos as características essenciais que a entidade gestora deve reunir:
1. Autonomia e independência, assegurando atuação
imparcial e livre de influências políticas
ou outros interesses que fragilizem a proteção.
Capacidade técnica especializada para compreender
os riscos reais enfrentados e aplicar práticas
eficazes de segurança. Articulação em rede,
envolvendo governo, sociedade civil e instituições
locais, fortalecendo a prevenção e a resposta a ameaças.
2. Foco na prevenção, atuando também nas causas
estruturais das ameaças aos defensores, com ampla
visão da integralidade da proteção, considerando aspectos
físicos, psicológicos e sociais. Garantia rigorosa
da confidencialidade das informações, com
protocolos seguros para preservar a privacidade
e a segurança dos protegidos.
3. Composição participativa e paritária em
conselhos deliberativos, promovendo decisões
transparentes e coletivas. Transparência na gestão
dos recursos e ações, essenciais para a credibilidade
do programa. E por fim, experiência prática
e reconhecimento prévio na defesa dos
direitos humanos como elementos que
conferem legitimidade e confiança.
4. Possuir inabalável credibilidade e confiança,
elemento fundamental para que a entidade
transmita confiança tanto por parte dos/as
defensores/as quanto das instituições
governamentais e da sociedade civil,
considerando que a natureza sensível das
informações exige um alto grau de
confiabilidade e discrição no cuidado
para com os sujeitos em proteção.
Reafirmamos que a defesa dos direitos humanos e a proteção de seus agentes exige respeito absoluto pela história, pelos saberes acumulados e pela confiança construída no tempo. Ignorar esses elementos coloca em risco não só o programa, mas a integridade e a vida daqueles que enfrentam riscos por lutar por justiça e dignidade.
Destaca-se ainda que o Fórum de Direitos Humanos e da Terra (FDHT) e o Conselho Estadual dos Direitos Humanos (CEDH) não foram ouvidos, sendo ignorados no processo, mesmo designados pela decisão judicial proferida na Ação Civil Pública nº 21992-62.2010.811.0041, cujo objeto consiste na implementação e na execução dos Programas no Estado e o juiz ter atribuído a estas duas organizações a responsabilidade pelo monitoramento da implementação dos referidos programas.
Nesse sentido, entendemos ser imprescindível que as principais organizações demandantes de defensores/as de direitos humanos, necessitam confiar e estar em sintonia com a entidade gestora do programa de proteção. Contudo, o que se constata é que isso não ocorre em relação a atual entidade, apontada como possível gestora do programa em Mato Grosso, pois é uma organização vinda de outro Estado, sem relação profícua e de confiança dos movimentos sociais de direitos humanos históricos no Mato Grosso.
Adicionalmente, destacamos que o CONDEL, órgão colegiado fundamental para o controle social e a interlocução entre Estado e sociedade civil, não foi chamado a participar da construção e das discussões relativas ao novo chamamento público para seleção da entidade gestora do PPDDH. Tal exclusão fragiliza os mecanismos de governança, monitoramento e accountability do Programa.
Nesse contexto, recomendamos que sejam adotadas as seguintes medidas para garantir a robustez, a transparência e a legitimidade do processo:
1. Instituir mecanismos formais de consulta
e participação da sociedade civil em todas
as etapas da elaboração, implementação,
monitoramento, seleção e escolha da entidade
executora, assim como na elaboração do(s)
plano(s) de trabalho(s) do PPDDH.
2. Garantir a participação efetiva do
Conselho Deliberativo do PPDDH-MT-CONDEL
nas discussões e deliberações relativas ao
chamamento público, incluindo instâncias de
decisão e acompanhamento da execução do programa.
3. Promover transparência institucional, com ampla
divulgação dos critérios, etapas e resultados do
processo de seleção da entidade executora.
4. Estimular o diálogo intersetorial entre
órgãos governamentais, conselhos e
sociedade civil, fortalecendo o controle social
e a defesa dos direitos humanos.
Contamos com o entendimento e apoio dos organismos estaduais, nacionais e internacionais na promoção dessas medidas, fundamentais para assegurar a efetividade, a responsabilidade e a justiça social no âmbito dos programas de proteção em Mato Grosso e por fim, conclamamos, portanto, as autoridades competentes a reverem essa decisão, promovendo diálogo efetivo com os movimentos e organizações locais, fortalecendo o programa com base em critérios que assegurem a sua sustentabilidade, transparência e participação efetiva da sociedade civil em todas as fases e etapas da existência dos programas de proteção.
Entidades, movimentos e organizações da sociedade civil que assinam a nota:
1. Associação dos(as) Amigos(as) do Centro de Formação e Pesquisa Olga Benário Prestes – Aamobep – Mato Grosso
2. Associação Comunitária de Desenvolvimento Econômico, Agrícola, Sociocultural e Educativo – ACODE
3. Articulação do Grito dos Excluídos/as de Mato Grosso
4. Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil – AMDH
5. Advocacia Popular Piauiense – APPA – Piauí
6. Advocacia Popular Piauiense – APP – Piauí
7. Associação da Taboca – São Félix do Araguaia -Mato Grosso
8. Associação de Pesquisa Xaraiés
9. Associação Regional de Produtores Agroecológicos – ARPA
10.Associação Centro de Tecnologia Alternativa – CTA
11.ACBJP-Comissão Brasileira Justiça e Paz
12.Associação dos Moradores Agroextrativistas da RESEX – Rio Guariba (Amorarr)
13.Associação dos Moradores Agroextrativistas da RESEX – Rio Roosevelt (Amarr)
14.Associação Pacto das Águas
15.Associação Sócio Cultural e Ambiental Fé e Vida
16.Centro Popular de Formação da Juventude – Vida e Juventude
17.Casa Pequeno Davi – Paraíba
18.Comissão Pastoral da Terra – CPT-Mato Grosso
19.Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennès – CDHDMB
20.Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Mato Grosso -CONAQ
21.Centro de Defesa da Vida Herbert de Sousa – CDVHS – Ceará
22.Centro de Defesa de Direitos Humanos Nenzinha Machado
23.Centro de Defesa de Direitos Humanos Heróis do Jenipapo
24.Centro de Defesa de Direitos Humanos Mandu Ladino
25.Centro de Defesa de Direitos Humanos Teresinha Silva
26.Centro de Defesa de Direitos Humanos
27.Centro de Defesa de Direitos Humanos Nayara Lemos
28.Comitê Estadual de Educação em Direitos Humanos do Piauí (CEEDHPI)
29.Coletivo Mulheres Camponesas e Urbanas de Mato Grosso
30.Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Braz. Joinville-SC
31.CDDH Serra – Centro de Defesa dos Direitos Humanos – Serra/ES
32.Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo – CDHPF
33.Comunidades Eclesiais de Base- CEBs/Cuiabá
34.Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente pe. Marcos Passerini – CDMP
35.Central Única dos Trabalhadores de Mato Grosso (CUT-MT)
36.Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade (CDHHT)
37.Conselho Indigenista Missionário/Regional Mato Grosso (CIMI-MT)
38.Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos- CEBI/MT
39.Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua/Comissão Cáceres
40.Sindicato dos Trabalhadores no Ensino Público de Mato Grosso – SINTEP
41.Conselho Nacional de Igrejas Cristãs -CONIC Mato Grosso
42.Centro de Referência em Direitos Humanos Prof.ª Lúcia Gonçalves
43.Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará/Cedenpa
44.Conselho Nacional do Laicato do Brasil- CNLB MT
45.Centro de Direitos Humanos Dom Pedro Casaldáliga – Mato Grosso
46.Comitê Popular do Rio Paraguai Pantanal
47.Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE/MT
48.Fórum de Direitos Humanos e da Terra – FDHT – Mato Grosso
49.Fórum Nacional das Entidades Gestoras de Programas de Proteção – FNEG
50.Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Maria Alves
51.Fundação Ecológica Cristalino – FEC
52.Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad)
53.Grupo Tortura Nunca Mais – Bahia
54.Grupo Pesquisador em Educação Ambiental Comunicação e Arte (GPEA)
55.Grupo Semente
56. IDEAS – Assessoria Popular – Bahia
57. Instituto Estadual Sementes do Bem
58. Instituto Braços
59. Instituto Ensinar de Desenvolvimento Social
60. Instituto Caracol (ICaracol)
61. Instituto DH – Promoção Pesquisa e Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania
62. Instituto Samaúma Carimba
63. Instituto Universidade Popular – UNIPOP
64. Instituto DH Promoção Pesquisa e Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania
65. Jornada Universitária pela Reforma Agrária – JURA/ MT
66.Levante Popular da Juventude de Mato Grosso
67.Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH Brasil
68.Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST
69.Movimento Estadual de Direitos Humanos – MEDHA/TO
70.Núcleo de Estudos em Saúde, Ambiente e Trabalho, Instituto de Saúde Coletiva – NEAST/UFMT
71.Organização de Direitos Humanos Projeto Legal
72.Rede Eclesial Pan Amazônica/ REPAM- Brasil
73.Rede Esperança Garcia – de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos do Piauí
74.Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH
Cuiabá, 13 de novembro de 2025.
1 Fonte: Relatório Estadual de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso. Fórum Estadual Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso, 2011. ASSASSINATOS E JULGAMENTOS (1985 – 2010) Organização: Inácio Werner (Centro Burnier). pág. 76 a 81. Disponível em: FÓRUM DE DIREITOS HUMANOS E DA TERRA – MT.
2 Fonte: Ofício nº 01/07/2011 de 05/07/2011 e Relatório Estadual de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso. Fórum Estadual Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso, 2011. Disponível em: FÓRUM DE DIREITOS HUMANOS E DA TERRA – MT.
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