A geopolítica da transição energética e militar baseada na Mineração

A chamada “transição verde”, centro das discussões e negociações da COP 30, é, na prática, uma corrida geopolítica por minerais críticos que intensifica a devastação ambiental, a militarização de territórios e a subordinação colonial do Sul Global, em uma disputa de poder sustentada pelo extrativismo predatório. Confira no quarto artigo da série Para “adiar o fim do mundo”: as verdadeiras soluções verdes brotam da terra

Frei Rodrigo Péret*

A chamada transição energética ocupa hoje uma posição central nas disputas globais por poder,  crescimento econômico e segurança. Mais do que uma resposta à crise climática, ela se transformou  no eixo estratégico de reorganização das cadeias produtivas e da nova geopolítica multipolar do  século XXI. Mas ela não vem sozinha: está acompanhada pela transição digital e pela transição  militar. E todas têm algo em comum: colocam o setor minerário no topo do processo. 

Estamos diante de uma inflexão histórica: essas transições não rompem com a lógica extrativista e  colonial, apenas as atualizam sob roupagens tecnológicas e militares. Trata-se de uma reconfiguração  do capitalismo global, que mantém as mesmas estruturas de dominação, agora com discurso “verde”,  digital e de segurança. 

Minerais da energia e da guerra 

No caso da transição energética, as tecnologias de captação, armazenamento e distribuição de energia  solar e eólica exigem mais matérias-primas, ou seja, mais mineração. Os minerais como lítio, cobalto, cobre, grafite, níquel, entre outros, chamados de minerais críticos, e as terras raras estão no centro dessa corrida. 

O discurso da “transição verde” oculta o fato de que esses mesmos minerais são hoje a espinha dorsal de armamentos de alta tecnologia, mísseis, drones, sensores, radares e veículos militares. São  minerais da energia, mas também minerais da guerra.  

Quem os controla? Grandes empresas, países ricos. E onde são extraídos? Na sua maioria, no Sul Global, perpetuando o modelo predatório, colonial e violador de direitos. 

Cada país define sua própria lista de minerais críticos conforme seus interesses estratégicos. A União Europeia, por exemplo, ampliou sua lista de 14, em 2011, para 34 itens em 2023. Os Estados Unidos incluíram 50 materiais, como cobre e ouro, não por sua escassez, mas como parte de uma agenda de reindustrialização e segurança nacional. Agora, sob o governo Trump, ficou evidente: não é o clima o principal motor da transição, mas a lógica militar e econômica. 

As chamadas “transições” escondem uma geopolítica de saque e de territórios de sacrifício. Um novo colonialismo se vai estruturando, no sentido de expropriação e controle contínuos dos países do Sul Global pelo Norte Global, por meio da dominação militar e/ou política direta. Isso fica claro na lógica daquilo que está sendo chamado no governo Trump de security-for-resources, segurança em troca de recursos, que vem definindo acordos onde o apoio militar, diplomático ou financeiro é trocado por acesso a minerais críticos. 

Exemplos disso são: 

Ucrânia – em plena guerra, um acordo com os EUA prevê o cogerenciamento dos lucros da  mineração como contrapartida à ajuda militar, redefinindo soberania como moeda de troca; 

República Democrática do Congo e Ruanda – a mediação estadunidense busca estabilizar a  região, não pela paz em si, mas para garantir acesso a reservas de cobalto e lítio. 

Esses acordos atrelam a reconstrução econômica e a segurança em áreas de guerra ou conflitos  armados à mineração, a uma exploração intensiva de bens comuns da natureza. Por sua vez,  naturalizam a presença militar como garantidora de “transição” e “segurança”. Trata-se de uma nova  forma de pilhagem e exploração, travestida de diplomacia climática.

Impactos da Mineração nos territórios – Garimpo desativado em Picuí, na Paraíba. Foto: Thomas Bauer.

A mineração invisível da tecnologia 

A lógica de extração e controle que sustenta a transição energética e militar repete-se na transição  digital, ainda que de forma mais invisível e difusa. 

Quando falamos em Inteligência Artificial, muitas vezes ela é percebida como algo imaterial,  abstrato. O capital forjou termos como “nuvem”, “big data” e “virtualização”. Contudo, a realidade é que essas tecnologias dependem de uma vasta infraestrutura física, data centers gigantescos,  servidores, sistemas de refrigeração e enorme consumo de água e energia, todos dependentes de  minerais e terras raras. 

A digitalização também se tornou vetor da militarização: sistemas de vigilância, inteligência artificial militar e centros de comando digital dependem de minerais críticos, energia constante e território disponível. 

Assim, os “minerais críticos” e as terras raras se tornaram ativos estratégicos essenciais para a  soberania nacional, a infraestrutura digital, a indústria bélica e a disputa pela hegemonia global. A  mineração é questão de segurança nacional, de poder militar e geopolítico. 

É o novo complexo industrial-militar-mineral, a mineração como infraestrutura energética, digital  e bélica, a tecnologia como ferramenta induzindo a extração minerária e a dominação, tendo as  “transições” como narrativa legitimadora. 

Soma-se a isso um consumo voraz. A rotatividade de componentes demanda mais e mais poder computacional. Tudo isso intensifica o esgotamento de matérias-primas e o desperdício, colocando  em xeque a sustentabilidade e a justiça na era digital. 

Tecnologia da morte e o complexo industrial-militar-mineral 

A terceira transição, mais silenciosa, profundamente interligada às outras, é a transição militar. Ela  também acelera a corrida por minerais críticos e terras raras. Esses insumos, como já comentamos  anteriormente, não servem apenas às tecnologias chamadas de energia “limpa”, que de limpa não tem nada. Elas são fundamentais para a tecnologia da guerra: drones, radares, satélites, mísseis  hipersônicos e sistemas de defesa de alta precisão. Estamos falando de tecnologia da morte. 

A China, por sua vez, consolidou-se como potência mineral. Domina não só a extração, mas  principalmente o refino desses elementos estratégicos. A Govini, empresa norte-americana de tecnologia de defesa, informou, em recente relatório, que o controle da China sobre cinco minerais essenciais – tungstênio, telúrio, gálio, germânio e antimônio – coloca quase 78% dos sistemas de armas dos Estados Unidos em risco devido a restrições de exportação. Isso revela como os EUA dependem de materiais processados na China. Mesmo a extração de antimônio que acontece na Austrália tem o seu refino na China, com isso, o acesso militar  norte-americano está comprometido.

Ainda de acordo com o relatório da Govini, mais de 43 mil cadeias de suprimentos de defesa dos EUA dependem da China em até seis níveis de fornecedores. A influência chinesa sobre 88% dessas cadeias, segundo o relatório, coloca em risco mais de 1.900 sistemas de armas caso sejam impostas restrições de exportação. Recentemente, Beijing impôs restrições à exportação de certos minerais por motivos de “segurança  nacional”, afetando os EUA e elevando preços globais. A resposta? Militarização da mineração.

Geopolítica e novas alianças militares 

A intensificação da competição global por minerais tem ampliado as tensões geopolíticas. Grande  parte dos esforços dos EUA, da União Europeia (UE) e de outros países para garantir o fornecimento dessas matérias primas é guiada por interesses de defesa e segurança, e não apenas por demandas energéticas, apontando para a formação de um complexo industrial-militar-mineral. Historicamente, as prioridades militares definem quais minerais são considerados “críticos”, e os usos civis e militares se entrelaçam, consolidando a influência do setor de defesa na extração global. 

A dependência crescente de minerais críticos tornou-se também um dos pivôs da geopolítica atual,  especialmente no embate entre os Estados Unidos e a China. De um lado, a China domina o  processamento e fornecimento de minerais críticos e terras raras; de outro, os EUA controlam boa  parte da fabricação de IA e tentam bloquear o avanço chinês no desenvolvimento de chips avançados. 

Cresce então uma guerra comercial com proibições, taxações, sanções e investimentos bilionários. A  tecnologia se afirma mais ainda como campo de guerra. E eventos como o lançamento do DeepSeek R1, um modelo chinês de IA, mostraram como minerais e a IA são agora elementos centrais do poder global. 

As transições energética, digital e armamentista fortalecem políticas protecionistas. Os EUA  oferecem subsídios, tarifas e créditos fiscais sob o discurso da “dominância energética”. A UE flexibiliza normas ambientais. E países aliados, como Canadá e Austrália, reavaliam suas alianças diante dessa nova ordem econômica militarizada. 

Em meio à disputa geopolítica pelo controle do complexo industrial–militar–mineral que sustenta as  transições energética, digital e de defesa, Donald Trump busca acesso às vastas reservas brasileiras  de minerais críticos, especialmente terras raras, como parte de uma estratégia para reduzir a  dependência dos Estados Unidos em relação à China e garantir cadeias de suprimento estratégicas  para as indústrias estadunidenses de alta tecnologia e armamentos.  

No momento, as negociações permanecem tensas, marcadas por um histórico de pressões norte americanas sobre a América Latina, bem como pela recente imposição de tarifas de 50% sobre  exportações brasileiras e pela exigência do Brasil de obter benefícios recíprocos, especialmente  transferência de tecnologia e investimentos, em vez de uma simples relação extrativista que perpetue  a dependência. 

O governo brasileiro reativou oficialmente o Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM), criado  pelo Decreto nº 11.108, de 29 de junho de 2022, mas até então inativo. O órgão, presidido pelo  ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, reúne 18 ministros de Estado, o presidente do  Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e representantes de governos estaduais, municipais, da  sociedade civil e de instituições acadêmicas ligadas ao setor mineral. 

A reconstrução de países em guerra é atrelada ao saque mineral. A transição vira um projeto de  dominação. E a mineração, mais uma vez, torna-se instrumento de subordinação e de conflito. 

Por uma transformação pós-extrativista e descolonial 

A análise da geopolítica das transições energética, digital e militar revela que, sob o discurso de  sustentabilidade, segurança e inovação, consolida-se um novo complexo industrial-militar-mineral  que atualiza a lógica colonial e extrativista do capitalismo global. A chamada “transição verde” é, na prática, uma corrida geopolítica por minerais críticos que intensifica a devastação ambiental, a  militarização de territórios e a subordinação do Sul Global. Assim, reproduz-se a histórica estrutura de dominação e desigualdade que sustenta o poder do Norte, agora legitimada pela retórica da  economia verde e digital. 

A narrativa de “energia limpa” encobre uma nova ofensiva mineradora sobre o Sul Global, agravando a destruição ambiental, as violações de direitos e a militarização do extrativismo. Sob a retórica da sustentabilidade, instala-se um extrativismo high-tech, corporativo e armado, que transforma a economia verde em instrumento de legitimação da violência. A promessa de justiça climática e social cede lugar ao aumento das desigualdades, deslocamentos populacionais e dependência do Sul em relação ao Norte. 

A militarização dos minerais críticos e terras raras atravessa as transições energética e digital, ampliando a mineração, desviando recursos públicos para o aparato bélico, fragilizando  compromissos socioambientais e ampliando as zonas de sacrifício. Em vez de enfrentar a crise  climática, esse modelo alimenta novos conflitos armados, consolidando uma estrutura de violência  sistemática, em que mineração, tecnologia e defesa se entrelaçam num sistema que privilegia o lucro  sobre a vida, a vigilância sobre a liberdade e o crescimento sobre a justiça. 

Torna-se evidente que não há verdadeira transição sem transformação sistêmica. A saída não está em  ajustes técnicos nem em novas formas de mineração “sustentável”, mas em um projeto civilizatório  alternativo, pós-extrativista, descolonial e socioecológico, que rompa com a lógica de crescimento  infinito e militarização da vida. 

O pós-extrativismo propõe justamente essa ruptura: trata-se de um modelo que vai além da  dependência estrutural da exploração intensiva de bens naturais como base da economia. Em vez de  centrar o desenvolvimento na extração e exportação de recursos, ele busca diversificar as economias,  respeitar os limites ecológicos do planeta e colocar o bem-estar das pessoas e da natureza acima do  lucro. O pós-extrativismo valoriza os modos de vida dos povos originários e tradicionais, promove a  justiça social, ambiental e climática, e reconhece os direitos da natureza como fundamento para uma  convivência equilibrada e solidária. 

Somente uma transformação pós-extrativista e emancipatória, centrada na dignidade dos povos e na  integridade do planeta, poderá superar as falsas soluções e evitar que a transição energética e digital  continue a ser, como hoje, um projeto de dominação e morte, em vez de um caminho de justiça e vida em plenitude.

*Frei Rodrigo de Castro Amédée Péret, ofm, é frade franciscano, trabalha há 37 anos diretamente com questões de conflitos de terra, como agente da Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais (CPT/MG). É assessor da Comissão Especial de Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, membro do grupo impulsor da Rede Igrejas e Mineração (IyM). 


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>> II – Da terra-território em chamas à COP30: o Cerrado grita, o mundo precisa escutar
>> III – Juventudes e Diversidades na linha de frente da justiça territorial e climática

Idealizada e organizada pela Comissão Pastoral da Terra com o apoio de parceiros da luta camponesa, a série ‘Para “adiar o fim do mundo”: as verdadeiras soluções verdes brotam da terra’ se propõe a articular debates importantes rumo à COP 30: conflitos no campo, os impactos do agro-hidro-minero-negócio e do capitalismo “verde” sobre a natureza e a humanidade e a defesa da sociobiodiversidade. Os artigos trazem as experiências, saberes e as saídas insurgentes para a crise climática construídas nos territórios e comunidades camponesas, tradicionais e originárias do Brasil; e se alimentam dos dados de conflitos no campo produzidos há quarenta anos pela CPT.

**Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil

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