Rompendo cercas e tecendo teias em territórios maranhenses*
As comunidades quilombolas Tanque da Rodagem/São João e Onça e a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão são exemplos da força e articulação dos povos
Edição: Ruben Siqueira (CPT/BA), Carlos Henrique Silva (Setor de Comunicação da CPT Nacional), Heloisa Sousa (Setor de Comunicação da CPT Nacional)

Foto: Júlia Barbosa
Inúmeras são as experiências de resistência e tecimento de teias nos territórios habitados por comunidades originárias, tradicionais, camponesas, das florestas e das águas no Brasil. A defesa do Bem Viver é parte dos modos de vida dos povos e das lutas contra os projetos de morte que avançam sobre os territórios.
No V Congresso da CPT, realizado entre os dias 21 e 25 de julho, em São Luís do Maranhão, foram apresentadas experiências de diversas comunidades acompanhadas pela Pastoral por todo o País. Duas das experiências escolhidas, de romper cercas e de tecer teias – mas que também estão interligadas nessas duas categorias –, estão presentes em chão maranhense e descritas a seguir.
Rompendo cercas
O Quilombo Tanque da Rodagem/São João (município de Matões) e Onça (município de Santa Inês), apesar de distantes geograficamente um do outro, estão absolutamente próximos em suas realidades de luta e nas estratégias de resistência para permanecer nos seus territórios, garantindo a vida e proteção da natureza. Essas comunidades quilombolas romperam as cercas do latifúndio e do medo e, cada uma ao seu modo, resistem e podem inspirar outros e outras.
Outro elemento que conecta essas comunidades são as articulações das quais ambas fazem parte, como o Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom) e Teia de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão. Esta última articulação expressa bem a diversidade de povos e identidades que compõem o campo maranhense. Não seria exagero dizer que a Teia é uma radiografia do Maranhão campesino, por muitos esquecido, porém, para outros tantos, representa uma potência que brota das chapadas, baixões, do Cerrado e da Amazônia, e inspira utopias.

Foto: Heloisa Sousa.
Tanque da Rodagem/São João – As comunidades Tanque de Rodagem e São João, não por acaso, estão localizadas também na região leste do estado do Maranhão, estes elementos empíricos nos ajudam a notar o vetor de deslocamento do sul para leste do estado, a fim de estabelecer “novas áreas” para grande produção de commodities. A situação fundiária das comunidades em relação ao Incra, segue sem titulação, embora, possua certificação pela Fundação Cultural Palmares desde 2014.
Em setembro de 2021, um grupo de pessoas invadiu o território da comunidade quilombola com armas e tratores para dar início ao preparo do solo para o plantio de soja. O grupo agia em nome do empresário paranaense do ramo do agronegócio e comunicação, Eliberto Stein, dito proprietário de uma área de aproximadamente 9 mil hectares, chamada de Fazenda Castiça. A área reclamada pelo empresário está em sobreposição ao território que compreende as comunidades – representando muito mais do que apenas áreas de moradia e quintais, mas também roças, extrativismo, caça, pesca, lazer e outras formas de uso.
Como forma de resistir e chamar atenção para as violações que vêm ocorrendo no território, a comunidade lançou mão da estratégia de ação direta. Desta forma, foram construídas barricadas para fechar a rodovia MA-262, que corta o território.
Após as ações diretas de barricadas na estrada que liga as comunidades à sede do município de Matões, os quilombolas ergueram acampamento que durou cerca de dois meses, chamado de “acampamento reviver Fátima Barros” em homenagem à liderança quilombola do Tocantins, que faleceu vítima da Covid-19. A mobilização não contou apenas com quilombolas de Tanque e São João e comunidades vizinhas, mas também povos e comunidades de outras regiões do estado que se deslocaram para Tanque e São João em apoio à luta.
A mobilização de povos, comunidades e de apoiadores em torno do acampamento tornou possível observar na realidade concreta alguns conceitos que parecem abstratos para um olhar desatento. O conceito de ação direta, apoio mútuo, autogestão, foram exercitados enquanto o acampamento esteve de pé. A cada quinze dias, as caravanas de com quilombolas, indígenas e apoiadores de várias partes do Maranhão se revezavam para manter a força e o fogo da luta vivos no acampamento.
Quilombo Onça – O quilombo Onça está localizado no município de Santa Inês, na região do Vale do Pindaré. No quilombo vivem e se reproduzem socialmente e materialmente cerca de 60 famílias, que há anos vivem acossadas por pecuaristas que foram grilando terras que hoje sobrepõem o território do quilombo.



Apresentação do Bumba Meu Boi Flor do Brasil, do Quilombo Onça, durante a Festa das Comunidades no V Congresso Nacional da CPT, em São Luís (MA). Foto: Heloisa Sousa
A despeito das várias ameaças e ataques desde 2022, ano em que o conflito se intensifica, a comunidade está assegurando o controle físico sobre uma área de 300 hectares – retomada pelos quilombolas em novembro de 2022. A área passou a ser conhecida como acampamento “Mãe Nazaré”. Também segue com o controle da Associação de Moradores. Em decorrência das articulações com outras organizações e da forte incidência junto à opinião pública, o Incra retomou o trabalho de Identificação e Delimitação do Território. Os conflitos registados são de várias ordens, como crime de violência contra pessoa (ameaças) e contra natureza (desmatamento e queimada ilegal).
Diante do clima de tensão na comunidade, lideranças do movimento passaram várias semanas se revezando no quilombo, no intuito de animar a comunidade e fortalecer o processo de luta e resistência no período mais agudo do conflitos. Nos últimos dias, quilombolas da comunidade vizinha Cuba estiveram presentes em Onça para prestar apoio e solidariedade aos irmãos e irmãs em luta.
Tecendo teias
A Teia de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão é uma articulação de Camponeses, Pescadores, Extrativistas, Quilombolas, Indígenas que estão em lutas para defender seus territórios e modos de vida na perspectiva do Bem Conviver.
A Teia é a expressão de um importante processo político na luta dos Povos e Comunidades por seus territórios no Maranhão, estado imerso em conflitos, violências e usurpações pelos projetos do capital – ferrovias, linhões de transmissão de energia, commodities agrícolas, portos, mineração, pecuária, dentre outros.

Foto: Júlia Barbosa
Histórico da Teia dos Povos
O tecimento da Teia teve início em 2011, durante a ocupação do Incra pelos quilombolas/Moquibom, camponeses e indígenas. Essa articulação se deu num contexto de acirramento dos conflitos contra os povos e comunidades, decorrentes do avanço de programas estatais, tais como, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) com ações em suas margens mais invisibilizadas; Os Planos Safra, ataques orquestrados por grupos políticos e econômicos que se apresenta como um alinhamento de poderes, entre as “bancadas BBB” (bancada do boi, da bala e da bíblia), Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Judiciário, que incidem para o desmantelamento de marcos jurídicos, como os direitos garantidos na Constituição Federal de 1988 e em legislações internacionais. No biênio seguinte foram realizadas várias incidências nos órgãos fundiários.
Em 2013, foi realizado o primeiro encontro da Teia e contou com a participação de lideranças quilombolas de 6 estados, além do Maranhão. Até 2018, eram realizados dois encontros anuais alternando territórios de povos indígenas, quebradeiras de coco babaçu, camponeses e quilombolas. A partir de 2019, tem sido realizado apenas um encontro por ano.
Ao longo do caminho de libertação dos Corpos e Territórios, foram definidos os Princípios – Ancestralidade, Complementaridade, Circularidade, Memórias, Comum, Cuidado, Autonomia, Histórias e Espiritualidade – e os Esteios – Soberania Alimentar, Defesa e Proteção dos Territórios, Educação, Equidade de Gênero, Autogoverno, Economia, Saúde e Comunicação. Em cada Encontrão, as comunidades partilham suas vivências impulsionadas pelos Princípios e Esteios.
A CPT está desde o princípio dessa construção, oferecendo apoio afetivo e efetivo e colaborando em todo o processo de reflexão e produção de conhecimento, além de proporcionar apoio para a realização dos intercâmbios de vivências e lutas.
Aprendizado
O desafio está colocado para a Teia e todos e todas que ajudam a construir a articulação para fortalecer as resistências dos povos e comunidades camponesas do Maranhão em defesa dos territórios, da natureza e da vida. Reforçar o apoio aos processos de retomadas (ações diretas) tão urgentes em razão do momento histórico atual, além de ampliar e fortalecer as alianças com as entidades e comunidades urbanas em processo de luta, elevando ainda mais o caráter plural da Teia em prol de um Bem Viver para os povos do campo e da cidade.
*experiências descritas na íntegra no “Caderno de Experiências”, utilizado nas tendas do V Congresso Nacional da CPT.

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