XI Festa da Troca de Sementes Crioulas é realizada em Mato Grosso

Força ancestral das mulheres de comunidades tradicionais estimula o plantio, distribuição e preservação das sementes crioulas

Por Luana Bianchin e José Carlos (CPT-MT)

Foto: Comunicação CPT-MT

A primavera é o período forte onde a natureza vigora com toda sua força e germinam todas as sementes. É sob essa perspectiva – da vida nova que floresce e se espalha que as comunidades tradicionais da Baixada Cuiabana organizaram um momento único de valorização do que há de mais significativo para os camponeses e camponesas. Trata-se da XI Festa da Troca de Sementes Crioulas, realizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT-MT) – e demais parceiros – no dia 27 de setembro de 2025, na comunidade São Manoel do Pari, município de Nossa Senhora do Livramento (MT).

O tema escolhido pela equipe organizadora foi “Semente: fonte de vida e soberania” e o lema, “Plantar, cuidar e produzir em defesa da Casa Comum”. Aproximadamente 300 pessoas compareceram à festa, advindas das comunidades locais que vivem na região de Morraria – as denominadas comunidades ‘morroquianas’.

Além disso, estiveram presentes representantes de outras comunidades acompanhadas pela CPT de Mato Grosso, graduandos do curso de Geografia da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), representantes da FASE, do MST, do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e do Grupo de Intercâmbio em Agroecologia (GIAS), além de outras entidades parceiras. Ao todo, mais de 70 pessoas e 3 organizações cadastraram suas sementes e mudas, representando 32 comunidades em 13 municípios e um total de 159 variedades de mudas e sementes.  

As atividades começaram a partir das 7 horas da manhã, com um café partilhado, o público já se direcionava até a equipe de registros para o cadastro das sementes crioulas trazidas das comunidades. O momento de mística ficou sob a responsabilidade da comunidade anfitriã São Manuel do Pari, com representantes que relataram aos participantes como surgiu e se organiza a comunidade.

Fotos: Comunicação CPT-MT

“A união presente nesta comunidade é fruto da solidariedade que historicamente nos fortalece. Tudo que colhemos desta terra, produzimos e vendemos, atende as nossas necessidades pessoais, da família e da comunidade”, enfatizou Miguelina, moradora da comunidade São Manoel do Pari .

Já Palmiro, também morador da comunidade, falou sobre o respeito e o cuidado que existem entre os agricultores e a natureza. “Se querem saber quem somos, basta olhar para esta mandala de sementes. Somos famílias que, com muito suor, muitos mutirões, garantiram o próprio sustento com o plantio e a colheita dos frutos que a terra oferece”, explicou.  

Semente: fonte de vida, segurança alimentar e soberania de um país 

Fotos: Comunicação CPT-MT

Para aprofundar a temática deste ano foi convidada a professora Márcia Montanari, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Ambientais, Saúde e Trabalho (NEAST). Márcia alertou sobre os impactos de agrotóxico no meio ambiente, na população e sobre os riscos da exposição química – muitas vezes, presente no consumo de alimentos e nos territórios das comunidades.

No que diz respeito à autonomia e soberania brasileiras, Montanari afirmou que a produção agrícola em Mato Grosso vive em total contradição, porque a produção do estado vai para fora do país. “Usamos a nossa terra, nossos recursos naturais para abastecer mercados distantes e, quando precisamos nos alimentar, temos que buscar em outros lugares. Muitas vezes os produtos já vêm cheios de veneno ou ultraprocessados”, salientou.

Ao questionar os dados sobre a grande produção agrícola no estado do Mato Grosso e a concentração de terras nas mãos de poucas pessoas, Márcia disse que, entre os municípios com maior valor de produção agrícola do país, seis são do Mato Grosso. No entanto, o que se produz nestas imensas lavouras são soja, milho, girassol e cana e que, para produzir nestas grandes quantidades, se usa muito veneno. “O Brasil é o país que mais usa agrotóxico no mundo e o estado de Mato Grosso é o que mais usa agrotóxico no Brasil. Isso significa que Mato Grosso é o estado que mais usa agrotóxico no mundo”, completa.

Montanari também enfatizou os potenciais riscos causados pelo uso das sementes transgênicas. Estas sementes foram desenvolvidas não com mais nutrientes e sim com maior resistência de ervas daninhas e insetos, o que faz aumentar o número de volume de agrotóxico que é usado. “A semente transgênica não é semente pura, ela tem gene de bactéria, gene de outros tipos de espécies biológicas que a deixa cada vez mais resistente aos venenos”.

Guardiãs de sementes: força feminina ancestral

Fotos: Comunicação CPT-MT

As mulheres animadoras de sementes do Grupo de Intercâmbio em Agroecologia (GIAS) também participaram das atividades e falaram sobre as experiências enquanto guardiãs de sementes. Josefa Aparecida Francisco, conhecida por dona Cida, veio da cidade de Rosário Oeste (MT) e, desde 2005, realiza esse trabalho. “Enquanto o Agro planta só um, nós plantamos dez e sem veneno”, afirmou a guardiã.

Miguelina também disse que, mesmo sem saber o que era ser uma guardiã, já acompanhava os pais no trabalho da roça desde a infância e que guardava consigo cada sementinha que via no quintal ou em qualquer outro lugar. Ainda, Germana da comunidade Mutum, na cidade de Jangada (MT), afirmou: “esse cuidado que a gente tem com a semente é muito importante porque é a vida que a gente está preservando”.

Por fim, dona Nísia, da Comunidade Mutuca reforçou que o cuidado com as sementes crioulas é um aprendizado ancestral. “Eles plantavam e cuidavam das sementes, tinha a lua certa para tirar e para plantar. Aprendi com eles e essa cultura eu estou mantendo e não vou deixar morrer”.  

Tendas temáticas e o esperançar das juventudes

Fotos: Comunicação CPT-MT

Foram oferecidas aos participantes duas tendas temáticas. A tenda ‘Vera Maria’, voltada para a troca de experiências e informações sobre as plantas medicinais, e a tenda Domingos Ezequiel, que teve como foco a partilha de saberes sobre a defesa do Cerrado e de suas nascentes.

A primeira tenda trouxe a sabedoria das mulheres agricultoras: dona Maria Romana, Maria Ezilda e Maria Lina. Elas preparam os chás e os remédios caseiros nas comunidades onde vivem e transmitem todo o saber tradicional presente nas plantas medicinais.

Já a segunda tenda, sob coordenação do agente de pastoral voluntário da CPT-MT, Baltazar Ferreira de Melo, com o apoio de Miguelina e Palmiro, João Buzatto, também voluntário da CPT-MT, e Aparecida Moura (‘Cidinha’) da FASE-MT, fez um resgate histórico do início desse trabalho em Mato Grosso e trouxe uma reflexão a respeito da importância de preservação e recuperação das nascentes nas comunidades.

Fotos: Comunicação CPT-MT

Quando todos os participantes voltaram para a grande plenária, os jovens Wender Cardoso e Maria Rita Schmitt Silva, integrantes do Coletivo Muxirum Jovem, apresentaram uma síntese das reflexões realizadas nas tendas. Maria Rita falou sobre a tenda Vera Maria e enalteceu a construção do conhecimento agroecológico e da salvaguarda dos saberes tradicionais.

“Todo este conhecimento é parte fundamental do esperançar ativo [no presente], para perspectiva [de futuro], baseada nos saberes tradicionais [do passado]” – Maria Rita Schmitt, integrante do Coletivo Muxirum Jovem

Por sua vez, Wender, que acompanhou a reflexão da tenda Domingos Ezequiel, disse que muito além de uma visão utilitarista e longe da lógica de mercantilização da natureza, conhecer o cerrado e tudo aquilo que ele nos proporciona é muito importante para que a necessidade da sua preservação se torne, cada vez mais, realidade.

“O debate sobre as experiências de recuperação das nascentes nos trouxe esperança, uma vez que se torna visível a alegria dos agricultores e agricultoras quando a água volta a brotar. É possível, acontece, pode ser feito” – Wender Cardoso, integrante do Coletivo Muxirum Jovem

A Festa de Sementes Crioulas foi, portanto, um espaço riquíssimo para que isso acontecesse e para que todos – homens, mulheres, jovens, povos do campo, das florestas e das águas, se fortalecessem em coletividade e aprendessem como construir o futuro com base no passado.

Trocas das sementes crioulas: ato de resistência e compromisso

Fotos: Comunicação CPT-MT

Logo após o momento formativo e o almoço coletivo com a culinária tradicional da Baixada Cuiabana, houve o momento da Feira Agroecológica, para o prestígio da diversidade de produtos saudáveis e valorização da produção camponesa.

No período da tarde, a comunidade São Manoel do Pari ainda animou os participantes com apresentações culturais. Ao som do toque da viola de cocho, entoaram o Cururu e, com a batida do mocho e tamboril, todos assistiram a uma apresentação de dança do Siriri.

Já no final da tarde, eis que chega o momento mais esperado. Conforme chegavam mais sementes, mudas de plantas e ramas de mandioca, se formava uma grande mandala da vida no centro do espaço celebrativo. Todos e todas, de braços erguidos, agradeceram a colheita, os frutos e o dom da partilha e fizeram as trocas das sementes crioulas enquanto ato de resistência e compromisso com a soberania alimentar das famílias.

A XII Festa da Troca de Sementes Crioulas acontecerá na Comunidade Cumbaru, no município de Nossa Senhora do Livramento (MT), em 2026.

Domingos Ferreira de Moraes virou semente: Dominguinhos Presente!

Em cada momento de preparação desta importante festa, juntamente com as atividades que realizamos nas comunidades, acabamos criando laços de amizade com os agricultores e agricultoras. Vibramos com seus sonhos, suas lutas e, principalmente, aprendemos muito ao ver o zelo e o compromisso com a terra, o cuidado com as sementes e a transmissão do conhecimento adquirido pelos seus antepassados.

Nesta forte experiência de fé e vida nos deparamos também com a dura realidade de nossa finitude humana presente na dor da ausência de companheiros e companheiras que já não estão fisicamente conosco para celebrar o dom da vida e a dádiva de plantar e colher. Costumamos dizer que esta pessoa virou semente. Elas continuam sendo exemplos fortes de que vale a pena lutar pelo direito de plantar. Nesta XI Festa da Troca de Sementes Crioulas,fizemos a memória da presença viva em nosso meio do companheiro Domingos Ferreira de Moraes, carinhosamente chamado de ‘Dominguinho’, através da seguinte mensagem: 

CARTA A DOMINGUINHO

Com o sentimento de saudade pela ausência física e profunda gratidão pela partilha da convivência é que nossos corações se reúnem para celebrar a vida de um homem cuja existência foi um exemplo de fé, trabalho e amor: o Sr. Domingos, nosso querido ‘Dominguinho’.

Sua vida foi a semente que brotou e se fortaleceu na terra sagrada do amor e do trabalho honesto. Desde muito novo, ainda na infância, ele enfrentou seus desafios com a certeza de que a vida nos presenteia com tesouros que só a perseverança pode encontrar. E, em cada desafio, seu sorriso e sua fé eram um farol; e sua palavra, um alento a nos lembrar que a esperança é a semente mais resistente de todas.

O solo de seu coração era fértil, irrigado pela devoção inabalável à Nossa Senhora Aparecida. Essa fé era a raiz que o sustentava e a luz que iluminava seu caminho, mostrando-lhe que cada luta era uma oportunidade para semear a justiça e a solidariedade.

‘Dominguinho’ foi um guardião da cultura de sua terra. Nas rodas de cururu, com seu ganzá na mão e seu sorriso constante, transformava o som simples em um canto de amor à cultura da Baixada Cuiabana. Sua voz era a melodia de um povo e, em suas histórias, que traduziam com simplicidade e afeto os segredos da vida, ele nos lembrava da beleza de uma vida simples e honesta.

A cultura do acolhimento era sua colheita mais farta. Sua casa e seu coração estavam sempre abertos para todos, onde o pão era partilhado sem esperar nada em troca. Ele nos ensinou que a felicidade verdadeira não está em acumular, mas em dividir.

Hoje, ‘Dominguinho’ nos deixa a lição mais valiosa de todas: que a vida é uma semente de amor que, quando plantada com fé e regada com dedicação, floresce em forma de esperança para as futuras gerações. Que seu legado seja a nossa motivação para continuarmos a semear a bondade e a colher a alegria.

Que o espírito de ‘Dominguinho’ continue a inspirar nossos passos, e que a sua memória seja a nossa força.

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