Tambores em festa

Por Jadir de Morais Pessoa | assessor da CPT

Foto: Acervo CPT

Um folião de Reis goiano saúda os festejantes de todas as heranças ancestrais nas demais regiões do Brasil. A batida de nosso Tambor ou Caixa, no tempo do giro de casa em casa marca o compasso dos corações de devotos e foliões. Nenhum deles fica imóvel quando ouve a primeira batida. É hora de festar com os Magos que seguem uma Estrela a caminho da Belém de antanho, revivida a cada ano no coração de todos aqueles que ainda se lembram de olhar para o alto, de todos aqueles que ainda se deixam incutir com estrelas.

E se vem chegando o mês de junho, famílias e vizinhos estão em barracões de quintais em Teresina (PI) confeccionando roupas, chapéus e dando os últimos ajustes nos instrumentos para as brincadeiras de boi, muitos deles mantendo ainda a natureza familiar de suas origens. E todos os brincantes mal aguentam esperar a hora de acender as fogueiras de terreiro para esquentar o couro de tambores e pandeirões. Será mais um mês de festa, com as danças da folga e da devoção aos santos do mês, Santo Antônio, São Marçal, São João e São Pedro. Em cada batida de tambor fica a certeza do brincante de que seu Boi, seja o Estrela da Noite, Chacumboi, Touro da Ilha, dentre outros, virá para o ano com mais brilho e alegria.

Ah! Mas como é que você fala do Bumba meu boi do Piauí e não faz nenhuma referência ao Estado do Maranhão, onde esse auto popular angariou maior projeção? É verdade. Vamos lá. Mas nesse caso, em vez dos grandes bumbódromos e das grandes agremiações patrocinadas, prefiro citar então o Boi da Madre Deus, fundado em 1890 no bairro de mesmo nome por uma comunidade de pescadores. O Boi permanece com as mesmas características de terreiro e é sustentado pelos moradores da comunidade, muitos dos quais ainda descendentes do antigo fundador. Quando visitei aquele Boi encantador, há pouco mais de uma década, não englobava mais que 30 brincantes. Tudo se passava na porta da Associação de Moradores, com os antigos brincantes sentados à porta, ao lado de um altar bem composto com algumas imagens de santos e um rosário. Do lado estava a fogueira para o aquecimento do couro dos tambores e pandeiros. Avizinhava-se a Festa de São João, o padroeiro da comunidade.

A menos de 400 km de Teresina, já no Estado do Maranhão, os quilombolas de Santa Rosa dos Pretos (no município de Itapecuru-Mirim) têm a cada mês, durante todo o ano, uma festa religiosa para suas rezas, comidas e cantigas da herança recebida. Somando-se às devoções ligadas ao catolicismo popular, a resistência no território passa necessariamente pelas frequentes oferendas e danças em respeito e homenagem aos encantados do Tambor de Mina e do Tambor de Crioula, como Dona Tereza Légua, festejada como a Mãe d’Águas. 

A instrumentação das rezas e da encantaria é concentrada nas batidas de vários tambores, construídos pelos próprios quilombolas com troncos de madeira escavada, com um pedaço de couro em uma das extremidades. O mesmo movimento místico que os faz repicar em último som nas tendas e nas capelas, quando é dia de protesto, coloca-os atravessados na linha do trem e na rodovia que destroçam aquele território de pretos. É que em Santa Rosa os mesmos tambores que fazem a conexão entre devotos e santos e entre iniciados e encantados, sustentam também a consciência cidadã e a resistência política dos sujeitos de todas as idades. Todos os moradores poderiam afirmar em uma só voz: “Onde existe um tambor de crioula forte existe um povo forte, onde há uma Mina forte existe um povo forte, onde a cultura resiste, o povo resiste”. O tambor é laço identitário étnico, ao mesmo tempo que é capaz de nutrir a capacidade de resistência.

Assim acontece nas giras do Jarê, em que Santa Bárbara, Santa Rita Pescadeira e outros encantados rodam ao som dos tambores impulsionando a resistência dos sem-terra pretos da Chapada Diamantina (Bahia). Assim também os tambores seguem intervindo junto aos santos, orixás e guias nos milhares de terreiros de Candomblé e de Umbanda espalhados por todas as regiões brasileiras. Juntem-se a eles os tambores das diversas linguagens das Congadas. Lá estão eles também nos “pontos” de um importante ritual de matriz africana encontrável em toda a Região Sudeste, que é o Jongo. São aquecidos quando começam a dançar e no meio da madrugada, se esfriam, são novamente aproximados ao fogo para que expressem toda a religiosidade dos jongueiros. Os tambores têm o poder de fazer a comunicação com o outro mundo, com os antepassados. Muitos jongueiros gostam de repetir que o tambor “vai buscar quem mora longe”.

Assim é o Brasil festeiro. Sem a segmentação sagrado/profano, sem preconceito de qualquer natureza; plural, sincrético e, por isso mesmo, não pode aceitar a intolerância religiosa. Quem participa da festa tem a chance de aprender que o que se sabe ainda não é tudo para se continuar a viver e a transformar os espaços vividos. A festa popular é o grande e fecundo momento a ensinar que a arte de viver e de compreender a vida que nos envolve está na perfeita integração entre o velho e o novo. Sem o novo, paramos no tempo. Mas sem o velho nos apresentamos ao presente e ao futuro de mãos vazias.

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