Audiência pública destaca violências e reforça luta por territórios no campo, nas águas e nas florestas

Evento na Câmara dos Deputados debate violações de direitos de povos originários e comunidades tradicionais; iniciativa marca três anos da Campanha Contra A Violência No Campo

Audiência Pública na Câmara dos Deputados aborda Violência no Campo, nas Florestas e nas Águas. Crédito: Adi Spezia / Cimi
Audiência Pública na Câmara dos Deputados aborda Violência no Campo, nas Florestas e nas Águas. Crédito: Adi Spezia / Cimi

Por: Henrique Cavalheiro – Assessoria de Comunicação do CPP

Com forte apelo à justiça social e em defesa dos povos do campo, das águas e das florestas, a Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados realizou, na terça-feira (12), uma audiência pública para debater os dados mais recentes sobre a violência no Brasil contra comunidades tradicionais e povos originários. O evento foi articulado pela Campanha Contra a Violência no Campo, que completa três anos de mobilização neste mês de agosto. Lançada em 2022, a Campanha conta com o apoio de mais de 70 organizações da sociedade civil.

A sessão ocorreu no Plenário 9 da Câmara e foi presidida pelo deputado Tadeu Veneri (PT-PR), com participação dos também parlamentares Érika Kokay (PT-DF) e Lenir de Assis (PT-PR). A audiência teve como ponto de partida as violências sofrida pelos povos do no campo, das águas e das florestas em conflitos com o capital, a partir de fatos e dados sistematizados no Caderno de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Relatório de Violência contra Povos Indígenas do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e do Relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), todos evidenciando o crescimento da violência.

Audiência Pública foi marcada pela apresentação de três relatórios que denunciam a violência contra os povos e as comunidades do campo em todo o país: comunidades pesqueiras, povos indígenas, trabalhadoras e trabalhadores rurais, dentre outras identidades.
Audiência Pública foi marcada pela apresentação de três relatórios que denunciam a violência contra os povos e as comunidades do campo em todo o país: comunidades pesqueiras, povos indígenas, trabalhadoras e trabalhadores rurais, dentre outras identidades.

A atividade foi aberta com a exibição do vídeo institucional da campanha, intitulado “Vida e Terra Sim, Violência Não!”.  A campanha articula esforços para denunciar, proteger as populações tradicionais e sensibilizar a opinião pública frente ao avanço da grilagem, do desmatamento e da exploração dos territórios por grandes empreendimentos.

Campanha, dados e denúncias: CPT expõe a face estrutural da violência no campo

Representando a CPT, o agente pastoral José Carlos da Silva Lima iniciou sua fala com um agradecimento à Câmara dos Deputados pela oportunidade de discutir um tema tantas vezes negligenciado. Segundo ele, a Campanha Nacional contra a Violência no Campo, que completou três anos em agosto, nasceu “a partir de esforço das organizações do campo, num período principalmente de governo que liberou o uso excessivo das armas, que estendeu esse uso das armas na propriedade, que semeou o ódio contra aqueles que lutam para conquistar a terra ou pra se manter no território”, destacou José.

Ele destacou que os dados sistematizados pela CPT, pelo CIMI e pelo CPP revelam uma escalada da violência, com crescimento expressivo dos conflitos agrários mesmo quando há redução no número de assassinatos. “Infelizmente ainda parte do governo não compreende a necessidade de enfrentar a violência com políticas públicas de verdade, com plano nacional que possa de fato efetivar uma reforma agrária, que possa resolver a questão das homologações das terras indígenas”, afirmou.

Agente pastoral e integrante da Coordenação Nacional da CPT, José Carlos da Silva Lima apresentou os dados dos conflitos no campo brasileiro. Crédito: Adi Spezia / Cimi
Agente pastoral e integrante da Coordenação Nacional da CPT, José Carlos da Silva Lima apresentou os dados dos conflitos no campo brasileiro. Crédito: Adi Spezia / Cimi

José Carlos também alertou para o avanço da mineração sobre os territórios tradicionais, o uso indiscriminado de agrotóxicos, que chamou de “guerra química contra as pessoas, contra os seus territórios” e o aumento das ameaças de expulsão, que cresceram 150% em 2024. Com base nos dados do Caderno de Conflitos e do recém-lançado Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro, o representante da CPT contestou a narrativa de que os conflitos seriam provocados pelas ocupações feitas pelos próprios camponeses. “A resistência diminui, mas a violência cresce”, pontuou, explicando que os territórios indígenas e assentamentos seguem sendo invadidos, com os principais responsáveis sendo “os fazendeiros, os grileiros, os empresários e madeireiros”. Por fim, lamentou o assassinato de nove pessoas no campo apenas em 2025 e concluiu: “A impunidade não é uma falha do sistema, mas é parte do sistema. Mata trabalhadores, mais de dois mil assassinados no campo brasileiro desde que a CPT registra, desde 1985”, concluiu.

Povos das águas enfrentam velhas e novas violências, denúncia CPP

O secretário executivo do CPP, Gilberto Lima, trouxe à audiência pública o panorama de violações enfrentadas pelas comunidades pesqueiras em todo o Brasil. Ele afirmou que essas populações sofrem “uma violência histórica, que vem ali trazendo especulação imobiliária, a privatização dos territórios e a criminalização da pesca artesanal”, denunciou. Lima também destacou o surgimento de novos tipos de ameaça, provocados principalmente pela forma como está sendo conduzida a chamada transição energética. “É a violência causada pela dita transição energética, que tem sido conduzida sem salvaguardas, do qual proteja as comunidades. E muito menos sem realizar a consulta prévia, livre e informada, no qual determina a Convenção 169 da OIT”, relatou o secretário. Gilberto entregou à Comissão o 3º Relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos, lançado em abril de 2025, que reúne dados de 450 comunidades acompanhadas pelo CPP entre 2022 e 2024.

O secretário executivo do CPP, Gilberto Lima, trouxe à audiência pública o panorama de violações enfrentadas pelas comunidades pesqueiras em todo o Brasil. Crédito: Adi Spezia / Cimi
O secretário executivo do CPP, Gilberto Lima, trouxe à audiência pública o panorama de violações enfrentadas pelas comunidades pesqueiras em todo o Brasil. Crédito: Adi Spezia / Cimi

O documento revela dados alarmantes: “97,3% das comunidades acompanhadas já sentem os efeitos diretos da crise climática”, afirmou Lima, ressaltando o impacto do aumento da temperatura, das alterações das marés, secas prolongadas, ventos extremos e períodos climáticos severos. “53% dessas comunidades enfrentam conflitos relacionados à invasão e à privatização das áreas pesqueiras, muitas vezes agravados por grandes empreendimentos”, como portos, indústria petroleira, usinas solares e parques eólicos, inclusive os offshore (eólicas no mar). Gilberto Lima denunciou ainda que “70,4% dos casos são negligenciados pelo próprio Estado”, seja por omissão das prefeituras, dos governos estaduais ou do governo federal. Outro dado apresentado foi que “77,6% registram diminuição da quantidade de pescados”, afetando diretamente a soberania alimentar e a renda das famílias. Ao encerrar sua fala, Lima fez um apelo por justiça e participação social: “O futuro de nossas águas e de nossa energia depende do que fazemos agora. A questão territorial e a soberania alimentar dependem muito dessa luta que a gente faz no dia a dia”, finalizou.

Marco temporal e violência: povos indígenas sob ataque

Durante a audiência, Ivanilda Torres dos Santos, secretária-adjunta do CIMI, apresentou os dados do Relatório da Violência contra os Povos Indígenas – 2024, destacando o agravamento das violações em razão da vigência da Lei nº 14.701/2023, conhecida como “lei do marco temporal”. Segundo ela, “a maioria das violências ocorridas contra os povos indígenas se deve também ao fato da vigência dessa lei”, que “vem destituir o direito que está garantido na Constituição Federal de 1988”, afirmou. Ivanilda relatou que “os povos, seus territórios, seus corpos e por que não dizer seus espíritos sofrem as mais brutalidades possíveis”, e que apenas em 2024 foram registrados 1.240 casos de violência contra o patrimônio indígena, incluindo “a omissão e morosidade na regularização das terras”, com 857 territórios ainda sem demarcação, dos quais 555 sequer iniciaram processo administrativo.

Ivanilda Torres dos Santos, secretária-adjunta do Cimi, apresentou os dados do Relatório da Violência contra os Povos Indígenas – 2024. Crédito Adi Spezia / Cimi
Ivanilda Torres dos Santos, secretária-adjunta do Cimi, apresentou os dados do Relatório da Violência contra os Povos Indígenas – 2024. Crédito Adi Spezia / Cimi

A representante do CIMI alertou também para a gravidade das invasões de territórios, inclusive já regularizados, destacando os casos no Mato Grosso do Sul e no Paraná, onde comunidades Guarani, Kaiowá e Ava-Guarani enfrentam “zonas de guerra” e ataques constantes de milícias. Ivanilda finalizou sua fala com um apelo: “Diante disso, a gente pede, a gente suplica que o Supremo Tribunal Federal cancele de uma vez por toda, reconheça a inconstitucionalidade dessa lei. Vida e território sim, violência não”, disse.

Quilombolas resistem a invasões e omissão do Estado no Maranhão

José Orlando dos Santos, de comunidade quilombola vítima de violência e representante do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), denunciou a intensificação dos ataques ao território quilombola Tanque da Rodagem / São João, em Matões (MA), desde 1982. Ele relatou desmatamentos ilegais, envenenamento, retirada de madeira e ameaças armadas, inclusive com a participação da Guarda Municipal, que resultaram no deslocamento forçado de mais de 70 famílias. “Foi um momento muito difícil, muita gente ficou doente psicologicamente”, afirmou, relatando o caso de uma moradora que sofreu um AVC hemorrágico após ser ameaçada de morte.

José Orlando dos Santos, de comunidade quilombola vítima de violência e representante do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), denunciou a intensificação dos ataques ao território quilombola Tanque da Rodagem / São João, em Matões (MA). Crédito Adi Spezia / Cimi
José Orlando dos Santos, de comunidade quilombola vítima de violência e representante do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), denunciou a intensificação dos ataques ao território quilombola Tanque da Rodagem / São João, em Matões (MA). Crédito Adi Spezia / Cimi

Orlando também alertou para os impactos da pulverização com agrotóxicos, que têm reduzido drasticamente a produção de alimentos e dizimado abelhas e espécies nativas, além da especulação com projetos de energia renovável. Ele finalizou cobrando ação do Estado: “Essa casa também tem o dever e o direito de proteger essas comunidades, libertou da sala do branco, mas não da escravidão”, denunciou José.

Povo Pataxó denuncia violência e pede apoio urgente

O cacique Mâdyn Pataxó, da Terra Indígena Comexatibá, no extremo sul da Bahia, relatou a sobreposição de seu território com unidades de conservação, assentamentos rurais, fazendas e grandes empreendimentos, além da pressão de atividades como “a monocultura do café, do eucalipto, a especulação imobiliária e ainda vem a mineração, desmatamento”, afirmou. Denunciou assassinatos de lideranças e jovens, destacando que “nenhum fazendeiro está preso, nenhum atirador miliciano está preso”, disse.

O cacique Mâdyn Pataxó, da Terra Indígena Comexatibá, no extremo sul da Bahia, relatou a sobreposição de seu território com diversos empreendimentos, e a violência do agronegócio contra as vidas das comunidades. Crédito: Adi Spezia / Cimi
O cacique Mâdyn Pataxó, da Terra Indígena Comexatibá, no extremo sul da Bahia, relatou a sobreposição de seu território com diversos empreendimentos, e a violência do agronegócio contra as vidas das comunidades. Crédito: Adi Spezia / Cimi

O líder indígena relatou ataques recentes da organização Invasão Zero e pediu que uma comissão visite a região: “Nós somos o povo de primeiro contato, estamos sendo criminalizados, assassinados e invisibilizados. Pedimos o apoio e a ajuda de vocês aí, urgentemente”, ponderou Mâdyn.

MST denuncia omissão estatal e avanço do crime organizado no campo

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), representado por Jesus Gonçalves, denunciou a ausência de políticas públicas efetivas para combater a violência no campo e afirmou que o Brasil continua sendo um dos países que mais mata defensores de direitos humanos. “Durante décadas, figura como um dos países mais violentos no campo, um dos países que mais mata defensores de direitos humanos, um dos países que mais ameaça pessoas, despeja, e tem pouca política, de fato, que vise coibir essa violência”, alertou Jesus.

Jesus Gonçalves, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), denunciou a ausência de políticas públicas efetivas para combater a violência no campo. Crédito: Adi Spezia / Cimi
Jesus Gonçalves, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), denunciou a ausência de políticas públicas efetivas para combater a violência no campo. Crédito: Adi Spezia / Cimi

Citando o caso da Fazenda Mutamba, no Pará, onde dois militantes foram assassinados em uma operação policial, ele classificou como revoltante a postura do Estado: “Nós ouvimos tanto o INCRA quanto o MDA dizer que não tem nenhuma possibilidade, no momento, de realocação ou, pelo menos, de destinação daquela área para que aquelas famílias não sejam despejadas”, relembrou. O militante alertou ainda para a crescente atuação do crime organizado nos territórios conquistados e criticou os grandes projetos sustentados pelo Estado que agravam os conflitos fundiários: “Os bilhões de investimentos estão sendo destinados aos atores que nos violentam, e a nós, sobram migalhas”, lamentou.

Despejos sem ordem judicial e insegurança fundiária preocupam o MDA

Diego Diehl, coordenador-geral de Planejamento Estratégico do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários (DEMCA/MDA), alertou para o agravamento do cenário fundiário no país e denunciou projetos legislativos que ameaçam o direito à posse. “Estamos tendo uma disputa legislativa na perspectiva de conferir autorizações legais para despejos sem ordem judicial”, afirmou, mencionando o PL 8262, em regime de urgência na Câmara, que pretende permitir que proprietários mobilizem a força policial para remover famílias sem autorização do Judiciário. Diehl classificou tais iniciativas como parte de “uma ofensiva contra os povos dos campos, das águas e das florestas”, criticando também a atuação de grupos como o Invasão Zero, que promovem “a Lei da Selva tentando ser implementada no campo brasileiro”.

Embora tenha comemorado a redução no número de assassinatos no campo, Diehl pontuou que “muito da violência no campo tem a ver com um certo caos fundiário, deixado pelo governo passado”, e reforçou que o MDA segue atuando “para consolidar assentamentos, avançar nas desapropriações e reconstruir o papel do INCRA”, concluiu. 

Deputadas defendem soberania, reforma agrária e fim da violência no campo

Deputadas Erika Kokay (PT-DF) e Lenir de Assis (PT-PR) também falaram na Audiência Pública. Crédito: Adi Spezia / Cimi

A deputada Erika Kokay (PT-DF) afirmou que defender a soberania nacional significa também “defender os direitos dos nossos povos originários, nossas comunidades tradicionais”, disse, e lutar pela reforma agrária como resistência à “lógica extremamente patrimonialista que marca a história brasileira”. Para ela, “quando você busca arrancar o território das pessoas que têm direito a este território é como se houvesse uma violência para além dos corpos que tombam”, ponderou Kokay, e combater a violência no campo é preservar culturas, territórios e modos de vida ancestrais.

Já a deputada Lenir de Assis (PT-PR) ressaltou que a violência no campo é “uma questão de direitos humanos que atinge toda a sociedade”, afirmou, e defendeu a urgência da reforma agrária e da demarcação de territórios indígenas e quilombolas. “Precisamos cada vez mais organizar nossas forças políticas para que o presidente Lula faça essa reforma agrária porque as forças contrárias são gigantes, mas nós temos potencial de trabalhadores e movimentos sociais que fazem essa luta”, declarou.

Encerramento e compromisso de continuidade

O presidente da Audiência Pública, deputado Tadeu Veneri (PT-PR), encerrou o debate agradecendo a presença dos participantes e reafirmando o compromisso com o enfrentamento da violência no campo. Citando Gramsci, destacou que “contra todo o processo de dureza que tem a realidade, é preciso ter o otimismo da prática”, declamou, e reconheceu o papel central das comunidades na resistência: “Quem sente na pele, quem agora à noite vai saber se será ou não ameaçado, é que, de fato, merece, tem e pode exigir e deve exigir justiça. Por isso que a gente está junto”, finalizou a audiência.

Assista a Audiência Pública na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=AVbMdxFiEV0 

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