As mulheres seguem em fileira por amor a essa pátria
Por Helenna Castro – CPT/BA*
Revisão: Teresinha Menezes (CPT/PI)** e Linalva Cunha (CPT/MA)***
No campo e na cidade, a classe trabalhadora segue em defensiva contra diferentes tipos de ataques a direitos sociais, como os trabalhistas, previdenciários e ambientais. As mulheres figuram como as principais e mais convictas lideranças em nossos territórios, mas seus clamores são abafados.


Intervenção do Coletivo de Mulheres da CPT durante o V Congresso da organização. São Luís-MA, 2025. Fotos: Helenna Castro (CPT-BA).
Foi o que as integrantes do Coletivo de Agentes Mulheres da CPT denunciaram durante o V Congresso da organização, realizado em São Luís-MA entre os dias 21 e 25 de julho deste ano.
Em um momento de insurgência, agentes pastorais e camponesas fizeram uma intervenção na manhã do dia 24 para denunciar a invisibilização de suas pautas e lutas tanto nos seus territórios, como dentro do próprio Congresso que, em cinco dias de atividades, não contou com nenhum espaço específico para debate sobre as lutas das mulheres.
Segundo o Coletivo de Mulheres da CPT, o propósito da intervenção foi chamar atenção para as violências existentes dentro dos territórios e nos espaços institucionais. Sendo o V Congresso um momento de reflexão sobre a prática política e pastoral da organização, esta poderia ser a oportunidade para discussão dos métodos e protocolos necessários para acompanhamento de casos de violências machistas e misóginas nos diversos âmbitos: “A CPT precisa pensar na construção de uma política de gênero respeitosa, ética e profética.”


Intervenção do Coletivo de Mulheres da CPT durante o V Congresso da organização. São Luís-MA, 2025. Fotos: Helenna Castro (CPT-BA).
Com vendas nos olhos, ouvidos e boca tapados, as mulheres demonstraram seu descontentamento com o número de assédios e violências sofridos por elas dentro e fora das suas organizações. Essas vendas impostas às mulheres pelo patriarcado não as impedem de sentir as dores das violências por todo o seu corpo e isso, claro, reverbera nos territórios, já que são elas as guardiãs da terra, das águas, das sementes e dos conhecimentos tradicionais. Mas como cuidar da terra adoecida, se as mulheres também precisam de cuidados?
“Cansei de ser domesticada, quero andar com os próprios pés,
Organizar a rebeldia, e assim deixar de ser refém”


Intervenção do Coletivo de Mulheres da CPT durante o V Congresso da organização. São Luís-MA, 2025. Fotos: Helenna Castro (CPT-BA).
As mulheres apontaram também a importância dos grupos e coletivos de mulheres para libertação das mesmas dos contextos de violência e desinformação, além da conquista de políticas públicas. Após entoarem cantos, levantarem seus cartazes e bandeiras, fizeram ressoar palavras de ordem que convidavam os homens a integrarem a luta em defesa dos direitos e das vidas das mulheres:
“Quando uma mulher avança
Nenhum homem retrocede!”

No campo e na cidade, as mulheres vivenciam panoramas diferentes em relação à luta por direitos e contra as violências, mas convergem na defesa do direito de viver livres e autônomas, sem medo de ser mulher.

Luta e resistência femininas: breve panorama brasileiro
As mulheres enfrentam cotidianamente os inúmeros efeitos do patriarcado sobre seus corpos e vidas, que vão desde questões institucionais, como a maior dificuldade de acessar o mercado de trabalho e postos de decisões políticas, até a sujeição a violências (sexuais, físicas, psicológicas, etc). Agravando esse cenário, ainda há a invisibilização dos trabalhos de cuidado e doméstico, muitas vezes relegados a elas e que transformam suas rotinas em jornadas longas e extenuantes.

Historicamente, as mulheres trabalhadoras ocuparam a linha de frente das lutas sociais em todo o mundo. Embora em muitos destes processos elas não tenham recebido o mérito por seu enfrentamento, as mesmas não deixaram a chama revolucionária se apagar e seguiram travando batalhas e conquistando direitos. Das lutas por libertação da colonização, pelo direito ao voto, pela reforma agrária, contra a ditadura empresarial-militar, etc, às resistências atuais contra os avanços do capital sobre os territórios, as mulheres seguem pisando firme e erguendo punhos.
O arcabouço jurídico brasileiro sempre possuiu ferramentas para limitar as autonomias e liberdades políticas e reprodutivas femininas. Há menos de 100 anos, as mulheres não tinham sequer direito a voto, instituído em 1932 após muita luta. O divórcio só passou a ser uma possibilidade no nosso país a partir de 1977, sendo que a não dissolução de casamentos civis privilegiava principalmente os homens que praticavam violências contra suas cônjuges, que tinham poucos meios para defesa.
Apenas em 2006 foi promulgada uma lei específica que trata dos casos de violência doméstica contra as mulheres e estabelece medidas para responsabilização e prevenção. A “Lei Maria da Penha” ficou conhecida dessa forma pois se inspirou na história de uma mulher cearense que foi alvejada pelo então marido e travou uma ferrenha luta para que a justiça fosse feita.
As mulheres camponesas enfrentam uma dificuldade ainda maior que as urbanas para acessar os direitos e políticas públicas que coibem e punem as violências por elas sofridas, tanto pela distância dos diferentes tipos de postos de atendimento quanto pelo menor contato com informações sobre as possibilidades de como agir nesses casos.

Há apenas três anos, em 2022, com a Lei nº 14.443/22, foi permitido à mulher decidir sobre seu corpo e a escolha de ter filhos ou não, sem precisar da autorização de um homem para tal. Antes, para a realização de uma laqueadura havia a necessidade da anuência do companheiro. Esse controle dos corpos-territórios femininos se reflete no direito negado até não muito tempo atrás, o da titularidade de áreas rurais.
Somente em 2001 o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) passa a permitir a titularidade feminina ou conjunta, que anteriormente estaria no nome do “chefe de família”, ou seja, o homem. Mesmo quando não havia um homem no núcleo familiar, a titularidade não era concedida à mulher que nela estava, e sim a alguém externo àquela área, o que trazia uma imensa insegurança jurídica para elas.
“Dos produtores rurais sem posse da terra, 4,5% são homens e 8,1% são mulheres – quase o dobro.”
em Propriedades comandadas por mulheres representam cerca de 5% da área rural, por Agência Brasil

O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), surgiu em 1996, porém o incentivo específico às mulheres rurais ocorreu apenas em 2003, através do PRONAF Mulher, que busca diminuir as desigualdades de gênero no campo. Recentemente, em 2023, a Lei Nº 14.660/23 passa a “incluir grupos formais e informais de mulheres da agricultura familiar entre aqueles com prioridade na aquisição de gêneros alimentícios no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)” e estabelece que “pelo menos 50% (cinquenta por cento) da venda da família será feita no nome da mulher”.
Essas medidas visam garantir a sustentabilidade financeira e autonomia das mulheres, dois fatores essenciais para que as mesmas consigam se desvencilhar de relacionamentos abusivos, já que a dependência econômica é uma das razões para que as mesmas não vejam saída se não permanecer submetidas à violências. Essa autonomia também permite que mulheres se organizem em coletivos próprios que discutem violência de gênero e os impactos do patriarcado em suas vidas.

Leia mais sobre:
Lei inclui mulheres da agricultura familiar com prioridade na aquisição alimentos do Pnae.
Dependência econômica da mulher agrava violência doméstica, dizem debatedoras
Linha de frente da resistência
Em muitas áreas em conflitos com o agronegócio, com a mineração e outros empreendimentos que violam direitos humanos e sociais, podemos visualizar que as mulheres se colocam na linha de frente na defesa dos territórios, não apenas com o intuito da permanência na terra, mas para preservação das identidades e tradições, para garantir o acesso à água de qualidade e conquistar políticas públicas.

“[…] quando o desenvolvimento humano é subjugado no processo de desenvolvimento econômico, sobra para as populações as consequências e nesse contexto as mulheres são as primeiras impactadas, porque historicamente são ignoradas como sujeitos de direitos, além da força do patriarcado e do machismo que as colocam em condições de inferioridade em todos os campos. Também são elas as que sentem mais intensamente os impactos sociais da urbanização do campo causada pela chegada de grandes empresas. Percebe-se nessas localidades o aumento dos índices de violências sexuais, prostituição e até gravidez na adolescência.” (Mulheres Atingidas: Territórios atravessados por megaprojetos)
Acesse o livro “Mulheres Atingidas: Territórios atravessados por megaprojetos”.

Também são as mulheres as que mais sofrem perseguições, ameaças, criminalização, algumas inclusive sofrendo ataques violentos. Mesmo vivendo em contexto de constante insegurança, elas lutadoras não deixam arrefecer os processos em que acreditam.
Às nossas mártires, nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta
Muitas lutadoras populares se tornaram “mártires da terra”, a exemplo das companheiras baianas Mãe Bernadete Pacífico (liderança do quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho-BA, secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no mesmo município de 2009 a 2016 e integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ) e Nega Pataxó (líder espiritual indígena Pataxó HãHãHãe, educadora popular e defensora da Terra Indígena Caramuru Catarina-Paraguaçu, no sul da Bahia), assassinadas em 2023 e 2024, respectivamente.

Ambas dedicaram suas vidas às lutas em defesa dos seus territórios e por isso se tornaram alvos de quem se apropria da terra e saqueia a natureza em busca do lucro a qualquer custo.

Suas mortes abalaram as organizações e lutadores populares da Bahia e de todo país, mas sua dedicação segue sendo inspiração e motivação para seguirmos engajados e firmes na luta pela demarcação dos territórios indígenas e quilombolas.
Leia sobre:
Mataram mais uma irmã, líder quilombola Mãe Bernadete é assassinada nesta quinta-feira (17)
Nota da CPT em apoio aos Pataxós hã – hã – hãe e repúdio à violência contra os povos originários
Cabe fazer memória também a Margarida Alves, líder sindical, defensora da reforma agrária e dos direitos trabalhistas no campo. A sindicalista paraibana foi assassinada a mando de latifundiários em 1983, crime que permanece sem solução, como ocorre em casos semelhantes.
“É melhor morrer na luta do que morrer de fome.”
Margarida Alves

Desde o ano 2000 ocorre, em intervalos de quatro anos, a Marcha das Margaridas, que reúne milhares de mulheres que se inspiram na luta da grande líder popular. O que Margarida defendia há mais de 4 décadas segue sendo pautado, nosso país vem registrando números alarmantes de conflitos no campo. Levantar a bandeira da Reforma Agrária ainda é necessário e urgente.

Outra mulher memorável, que foi perseguida e assassinada por luta, foi Irmã Dorothy, estadunidense de origem, grande defensora dos povos da terra, das águas e das florestas. A religiosa integrou a CPT desde sua fundação, há 50 anos, até sua morte, em 2005. Irmã Dorothy acompanhou especialmente a luta dos camponeses na região da Transamazônica, no Pará.
“Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar”.
Irmã Dorothy

Muitas outras companheiras tombaram na defesa dos seus territórios e seguem nos inspirando a lutar para honrar suas memórias e construir um projeto popular de país, onde todos têm direito a terra, trabalho e pão.

Chega de violência contra as mulheres!
Chega de machismo!
Em defesa da vida das mulheres e dos nossos territórios!
* Helenna Castro é agente da CPT-BA, Educomunicadora Popular e escritora.
** Teresinha Menezes é agente voluntária e comunicadora da CPT-PI.
*** Linalva Cunha é Agente voluntária da CPT-MA, Integrante do Coletivo de Agentes Mulheres da CPT e Assessora Técnica do Coletivo de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Maranhão (CMTR-MA).