Canabrava resiste! Comunidade ocupa Secretaria do Patrimônio da União em MG e reforça luta por território às margens do São Francisco
Desde 2005, a Comunidade Pesqueira e Vazanteira de Canabrava, no Norte de Minas Gerais, enfrenta despejos violentos, ameaças e criminalizações. A ocupação desta terça-feira (6) é uma ação para exigir dignidade, território e justiça

Da Assessoria de Comunicação do
Conselho Pastoral de Pescadores e Pescadoras (CPP Nacional e Regional MG/ES)
Fotos: Frei Gilvander Moreira (CPT Minas Gerais)
A Comunidade Tradicional Pesqueira e Vazanteira de Canabrava, situada às margens do rio São Francisco, no município de Buritizeiro (MG), tem sua história marcada pela força de um povo que cultiva o rio, a terra e a esperança. Desde meados dos anos 2000, as famílias enfrentam uma escalada de conflitos territoriais, com despejos forçados, violência armada e criminalização de lideranças. Esta matéria evidencia como o direito à terra, ao território e à vida seguem sendo negados, apesar da resistência e das denúncias persistentes.
Nesta terça-feira, 6 de maio de 2025, as famílias da Comunidade de Canabrava ocupam a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) em Minas Gerais, junto com o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (Regional Minas Gerais), as comunidades Tradicionais Quilombolas, Pesqueiras e Vazanteiras de Caraíbas – Pedras de Maria da Cruz; Croatá – Januária; Família Lídia Batista, Sangradouro Grande – Januária; Colônia de Pescadores Z 36 em Manga; Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Buritizeiro, Instituto DH – Promoção, Pesquisa e Intervenção em Direitos Humanos; agentes de pastoral do CPP e da CPT, dentre outros apoiadores e apoiadoras.
A ação da Comunidade Tradicional Pesqueira e Vazanteira de Canabrava solicita à Secretaria do Patrimônio da União (SPU/MG) a emissão urgente do Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) . Exige também do Estado brasileiro e das autoridades locais uma resposta concreta e respeitosa aos direitos dos povos das águas que vivem histórica e ancestralmente naquele território. A ocupação é um ato legítimo de luta e resistência, que expressa o cansaço diante de anos de ameaças, perseguições e tentativas de expulsão. Canabrava está exausta de conflitos e humilhações. O território é sagrado: é onde se constroi a vida, o sustento e os laços de comunidade. O poder público precisa romper com o silêncio e oferecer respostas urgentes e efetivas.

“Estamos aqui esperançando sucesso com a ocupação, há muito tempo estamos lutando essa batalha. É uma alegria eu estar aqui hoje lutando pelo nosso território com minha família, vieram os filhos e os netos. Três gerações na SPU”, disse Maria Neuza Araújo Pereira, pescadores e benzedeira da comunidade Canabrava.
O CPP-MG/ES está presente e apoia a ocupação por entender que este é um ato de resistência coletiva, com força simbólica e prática. Após quase 20 anos de luta incansável, o povo de Canabrava clama por paz e reconhecimento. A comunidade exige a regularização imediata do território para seguir vivendo seus modos de vida tradicionais em harmonia com o rio, com a terra e com dignidade. Basta de violência, perseguição e medo. É hora de assegurar o que já é de direito: o território tradicional de Canabrava pertence ao povo que o habita.
“Restituir a posse legal da Comunidade Canabrava é preservar os bens e a integridade da criação para esta geração e as gerações futuras. Território de Canabrava regularizado já”, aclama Irmã Letícia, secretária-executiva do CPP-MG/ES.
Celeridade na demarcação
O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) de cada Estado Brasileiro deverá concluir a demarcação de todas as terras pertencentes à União no território brasileiro até o final de 2025. A decisão segue os acórdãos 726/2013 e 1286/2021, que obrigam todas as secretarias estaduais da SPU a realizar o levantamento e o posicionamento da Linha Média das Enchentes Ordinárias (LMEO) e da Linha Preamar Média (LPM), essenciais para a delimitação dessas áreas.

No norte de Minas Gerais, o processo já deveria estar avançado. Uma decisão judicial, fruto de uma Ação Civil Pública contra a SPU (processo nº 1004394-29.2019.4.01.3807, em trâmite na 3ª Vara Federal de Montes Claros-MG), determinou que a secretaria realizasse a demarcação até dezembro de 2023. No entanto, a SPU solicitou sucessivas prorrogações, adiando o prazo para dezembro de 2024 e, mais recentemente, pedindo mais 120 dias, o que empurra a previsão de conclusão para abril de 2025.
Contexto histórico da Comunidade
Para facilitar a compreensão sobre a trajetória de lutas vivida pela Comunidade de Canabrava, preparamos uma linha do tempo com os principais marcos de violência, perseguição e resistência. Ao reler esses episódios, é possível perceber como, historicamente, essas famílias têm vivido sob o peso do medo, da insegurança e da constante ameaça de expulsão. Conheça cada momento e entenda melhor a urgência por justiça, paz e regularização do território:
2005–2016: Reconhecimento e organização em meio à invisibilidade
A Comunidade Pesqueira e Vazanteira de Canabrava, localizada no município de Buritizeiro (MG), começa a se organizar coletivamente em meados dos anos 2000 para reivindicar o direito ao território tradicional. Inserida nas margens do rio São Francisco, a comunidade vive da pesca artesanal e da agricultura nas vazantes, mantendo práticas ancestrais de manejo do rio e da terra. Ainda sem titulação ou reconhecimento pleno, os moradores enfrentam pressões crescentes de fazendeiros, grileiros e empreendimentos que avançam sobre as margens do Velho Chico.

Ao longo desses anos, a comunidade passou a buscar o reconhecimento institucional por meio da solicitação da Titulação de Território Quilombola e da criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), além de medidas de proteção junto ao Ministério Público e outros órgãos.
2017: Despejo violento e tiros contra moradores
No dia 18 de julho de 2017, a Comunidade de Canabrava sofreu um dos episódios mais graves de violência. Mesmo com a liminar de reintegração de posse já revogada, oficiais de justiça, acompanhados da Polícia Militar de Minas Gerais, executaram um despejo ilegal e forçado, destruindo moradias, pertences e lavouras. As famílias foram expulsas do território de forma abrupta e humilhante, sem qualquer amparo ou diálogo.
Leia a matéria sobre o ataque à comunidade em 2017
Leia a Carta Denúncia publicada pelo CPP sobre o despejo ilegal
Pouco depois, em 24 de agosto de 2017, um morador da comunidade foi alvo de disparos de arma de fogo, num claro ato de intimidação e tentativa de silenciamento. Nesse contexto, a repressão também alcançou agentes pastorais: lideranças da comunidade e apoiadores, entre eles a missionária e agente do CPP Irmã Neusa, falecida em 2023, chegaram a ser criminalizados por sua atuação solidária e de apoio à resistência da comunidade, como noticiado pelo CPP à época.
Leia a matéria de 2017 no site do CPP
2018: Violência se espalha no Norte de Minas
Em 2018, o contexto de Canabrava se inseria num cenário mais amplo de aumento da violência contra comunidades tradicionais no Norte de Minas Gerais. O CPP denunciou a escalada de ameaças, invasões e perseguições a pescadores e pescadoras, vazanteiros, quilombolas e indígenas. Canabrava continuava a enfrentar restrições ao uso da terra, pressões externas e ausência de políticas públicas que garantissem o direito ao território.
Leia a matéria de 2018 no site do CPP
2019: Denúncias ganham visibilidade nacional e internacional
Em 2019, frente à continuidade das violações, a situação da comunidade chegou a instâncias internacionais. A Terra de Direitos, organização de Direitos Humanos que atua na defesa, na promoção e na efetivação de direitos, especialmente os econômicos, sociais, culturais e ambientais (Dhesca), recomendou que fosse acionado o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, como forma de pressionar o Estado brasileiro a garantir proteção às famílias de Canabrava.
No mesmo ano, a comunidade lançou uma nota crítica sobre o indeferimento da solicitação de Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), instrumento que poderia garantir segurança jurídica ao território tradicional. A negativa por parte do Estado foi duramente criticada pelas lideranças locais, que viram no indeferimento mais um mecanismo de negação de direitos.
27.05.2020: “Venho olhar a água”: Pescadores expulsos das margens do rio (Repórter Brasil)
07.07.2020: Nota Pública contra a Usina Hidrelétrica Formoso, em Minas Gerais
Leia a matéria de 2019 sobre a ONU
Leia a nota da comunidade sobre o TAUS
2023: Nova tentativa de despejo e decisão suspensa
Seis anos após o despejo de 2017, em 2023, a comunidade voltou a ser ameaçada com uma nova liminar de reintegração de posse. A notícia gerou forte mobilização da comunidade e de organizações de apoio, inclusive o CPP, que atuou na articulação política e jurídica para impedir a execução.
Graças à mobilização, a liminar foi suspensa, mas o clima de insegurança persiste. O histórico de violações demonstra que, mesmo quando os direitos são reconhecidos judicialmente, a realidade no território continua marcada por ameaças, medo e resistência.
Leia a matéria de 2023 sobre a suspensão da liminar
2025: Gado destrói plantações e sede comunitária em novo ataque ao território
Em fevereiro de 2025, a Comunidade de Canabrava sofreu novos ataques à sua permanência no território: dezenas de cabeças de gado da Fazenda Pau D’Óleo invadiram a área, destruindo plantações, cercas e até a sede da associação local. Apesar dos esforços da comunidade para proteger suas roças, o manejo livre do rebanho continua avançando de forma violenta, trazendo perdas materiais, insegurança alimentar e medo constante às famílias. O CPP denuncia mais esse grave episódio como parte de uma estratégia contínua de expulsão forçada e exige respostas imediatas do poder público.

Canabrava segue resistindo: uma luta por justiça e território
A história da Comunidade Pesqueira e Vazanteira de Canabrava é uma história de coragem. Enfrentando despejos, criminalização e violência, as famílias seguem firmes em sua luta pelo território, pela memória dos antepassados e pelo direito de viver do rio e da terra. O Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), regional MG/ES, segue ao lado dessa comunidade, denunciando as violações, exigindo justiça e reafirmando que os territórios tradicionais não estão à venda — são espaços de vida, cultura e dignidade.
